Marxismo moderno e utopias

José Correia Leite

Qual o impacto que as transformações em curso no capitalismo e o colapso do estalinismo estão tendo sobre as reflexões marxistas?

O impacto é, por enquanto, fundamentalmente negativo. Como tendência dominante assistimos freqüentemente a uma decomposição ideológica acelerada. Há uma revisão não só teórica, o que é saudável, mas também política, filosófica e mesmo ética, que dilui os valores fundamentais que justificavam o movimento operário e socialista de inspiração marxista, que o esvazia de seu conteúdo básico.

Neste campo temos, de um lado, freqüentes tentativas de conciliar o marxismo com o pensamento burguês, com o utilitarismo, com o racionalismo na sua versão individualista, com o positivismo, com o liberalismo político e econômico etc. Isso cobre toda uma gama de fenômenos, desde partidos políticos de massa, como o PDS italiano (ex-PC), até pequenos grupos de intelectuais na Europa e na América Latina (por exemplo, o chamado “marxismo analítico”).

Também no Brasil a mistificadora ideologia da “modernização” (nova figura retórica do neoliberalismo), acabou influenciando setores da intelectualidade e da esquerda.

Mas há também, embora esta não seja a tendência dominante, um fortalecimento de posições dogmáticas. Trata-se da reafirmação mecânica do marxismo, de princípios fundamentais do marxismo-leninismo, do trotsquismo etc., recusando qualquer tentativa de refletir sobre a nova realidade, os acontecimentos e as transformações. Reafirma-se uma certa vulgata marxista. Faz-se abstração de tudo que pode ser fenômeno novo que interroga as teorias estabelecidas. Alguns setores da esquerda buscam certezas simples, dogmáticas, clássicas, verdades monolíticas que não comportam problematizações.

Mas há também um movimento de renovação do marxismo, não?

Sim, há uma certa renovação. Um elemento bastante positivo é a redescoberta da Escola de Frankfurt. Há uma valorização, por parte de uma nova geração de intelectuais da Europa, Estados Unidos e América Latina, da crítica que ela faz do paradigma ocidental da modernidade. Isso corresponde a um aprofundamento e radicalização do marxismo, da sua negatividade, que vai no sentido oposto ao da sua diluição e reconciliação com o mundo burguês. O marxismo precisa, para enfrentar os problemas atuais, radicalizar sua crítica da modernidade, do paradigma da civilização ocidental, industrial, moderna burguesa.

A questão ecológica é outro elemento que está provocando todo um deslocamento de problemática e renovação da visão de mundo do marxismo. Isso é tremendamente importante, impondo o questionamento de uma série de idéias como a de que o desenvolvimento das forças produtivas seria algo em si positivo ou que a dominação do homem sobre a natureza faz parte do projeto de emancipação do trabalho. São idéias que fazem parte da herança da filosofia das luzes e da ideologia do progresso no marxismo, que estão sendo problematizadas.

Isso tem conseqüências políticas importantes. A crise ecológica que está em curso significa uma ameaça direta para a sobrevivência de todas as formas de vida no planeta e não só para o nosso pequeno mamífero bípede que é o homo sapiens. Este é um problema novo, que era alheio a Marx ou Engels. É nesse sentido que se coloca a necessidade de revisão, por exemplo, do conceito de forças produtivas, de progresso, da técnica como um aparelho neutro ou a idéia de dominação da natureza. Trata-se de uma revisão necessária, que vai no sentido de radicalizar nossa oposição à moderna civilização industrial, de intensificação da recusa. Há aí inclusive um sentido de urgência; esta civilização está levando a humanidade ao suicídio.

Há uma tese cada vez mais em voga de que o que caracteriza a nova etapa do capitalismo é o declínio do papel do trabalho. Como você vê esta posição?

Há aí dois aspectos. Um primeiro é econômico, com o aumento da composição orgânica — o peso muito maior da ciência, da tecnologia, das máquinas, da robotização, da informatização — e a diminuição progressiva do peso do capital variável, do trabalho assalariado. É um processo que já vem de algum tempo, com a chamada terceira revolução industrial. Mas deduzir disso conseqüências sociológicas como aquelas apontadas por exemplo por André Gorz — que a classe operária não tem mais papel, de que já acabou — é cair num economicismo. Estas visões confundem a classe trabalhadora com a classe operária de macacão, uma posição cada vez mais anacrônica, e tiram daí conseqüências políticas bastante perigosas.

Continua existindo uma classe operária bastante numerosa, mas principalmente o capitalismo continua penetrando, numa escala sem precedentes, em inúmeras esferas onde antes ele estava ausente. Mandel tem razão quando mostra que o que está havendo é uma enorme extensão da classe trabalhadora assalariada, daqueles que são obrigados a vender sua força de trabalho para viver.

O segundo aspecto é que há uma massa cada vez maior de excluídos do sistema. Mesmo na Europa e no conjunto do Primeiro Mundo já há um grande número de marginalizados pelo capital. Os acontecimentos de Los Angeles são reveladores.

Mas o problema se coloca com muito mais força na América Latina e no conjunto do Terceiro Mundo. Hoje é evidente, ao lado do crescimento do proletariado, a existência de uma massa crescente de pobres, de gente excluída de forma permanente ou provisória da produção, do consumo e da própria sociedade. São pessoas vivendo de expedientes, mascates, auto-emprego, prostituição, criminalidade, narcotráfico; tudo isso tende a piorar.

Esta aí um grande desafio não só para a teoria como para a prática emancipadora. O problema é procurar unificar esta massa, que eu chamaria de “probretariado”, com a classe operária organizada.

Em que medida o socialismo também pode ser considerado parte da modernidade industrial, do pensamento ocidental, compartilhando sua visão de mundo, valores e horizonte?

Esta questão é complexa. A idéia do marxismo é que o movimento operário é herdeiro das conquistas avançadas da burguesia, do racionalismo, da filosofia das luzes, da própria revolução francesa; ele vai realizar as promessas que não foram concretizadas pelo progresso burguês. Esta idéia é legítima e não dá para entender o que é o socialismo sem esse elemento iluminista. Como diz Ernst Bloch, conceitos como liberdade, igualdade e fraternidade contêm um excedente utópico que vai muito além do horizonte burguês e é o socialismo que vai realizá-lo.

Por outro lado, existe no movimento socialista e no próprio pensamento de Marx uma visão em que a continuidade entre a civilização industrial moderna e o socialismo é afirmada de maneira excessivamente unilateral. A necessidade de ruptura com esse modelo de civilização não está suficientemente afirmada. O socialismo não é só fazer funcionar de forma mais eficaz e racional, este sistema produtivo, industrial, econômico; não é desenvolver mais as forças produtivas, só que agora através da planificação.

Esta concepção não é suficientemente crítica ao paradigma ocidental da racionalidade instrumental e do sistema de produção tal como ele existe. Um exemplo bastante conhecido disso é o fato de Lenin e dos marxistas terem considerado o taylorismo uma excelente descoberta e introduzido-o na URSS. Havia uma visão pouco crítica em relação ao aparato técnico e produtivo, das relações de produção em seu conjunto, para além da propriedade privada.

Não é só um problema de continuidade do aparato produtivo, mas toda uma questão de civilização: a vida urbana, as relações entre indivíduos, as relações com a natureza. O problema é saber se o socialismo representa um novo paradigma de civilização ou só um aperfeiçoamento da sociedade atual.

O lugar que ocupa o automóvel na sociedade atual é um bom exemplo disso. É incrível como o conjunto da vida econômica, social, urbana, o sistema de habitação, o ócio, a ideologia, tudo isso está articulado com o sistema do automóvel. É uma espécie de divindade que exige sacrifícios humanos: todos os fins de semana, nas capitais do mundo, há aquela lista infindável de mortos nos acidentes, um massacre de homens, mulheres e crianças tratado como uma fatalidade, um fenômeno da natureza. São mais mortos que em muitas guerras. São certos modelos de consumo, próprios da modernidade, nefastos do ponto de vista social, humano, ecológico.

Isso aponta para outra problemática. Na medida em que o socialismo é uma tentativa de criar um modelo novo de civilização, ele também é uma tentativa de reestabelecer ou reencontrar ou reformular elementos do passado pré-capitalista que foram destruídos pela modernidade burguesa. É isso que eu chamo de elemento romântico do marxismo, presente no próprio Marx e em parte da tradição marxista do século XX.

Não se trata de voltar ao passado, mas de imaginar um futuro em que elementos válidos do passado — do ponto de vista humano, cultural, social, ético — que foram destruídos pela modernidade capitalista possam ser restabelecidos obviamente sob uma forma nova. O próprio Marx fala sobre isso a propósito da comunidade que existiu no passado e que foi destruída pela propriedade privada e pelo capitalismo. O socialismo será uma nova comunidade, mas naturalmente não como a comunidade primitiva. Isso se aplica a outros fenômenos da vida social e cultural.

Mas isso não é contraditório com o pensamento socialista, que é iluminista, cientifista, desencantador, desmistificador do mundo? E o capitalismo não dissolveu praticamente os valores que dão um sentido de comunidade à existência humana?

O socialismo é herdeiro do racionalismo e do iluminismo, mas também da crítica da filosofia das luzes e da modernidade. Estes dois componentes estão presentes no pensamento socialista.

Ernest Bloch tem razão ao dizer que existe dentro do marxismo duas correntes: uma corrente fria, a análise racional, implacável, científica, objetiva, do que é o capitalismo, de como funciona o sistema, quais são suas contradições; e outra que ele chama de corrente quente, a do princípio esperança, da utopia, do reencantamento do mundo. São duas dimensões igualmente necessárias e complementares. Existe uma tensão entre elas, mas é uma tensão dialética, que tem que ser permanentemente gerida pelo marxismo para evitar que ele se afogue no cientificismo positivista ou caia num sentimentalismo romântico.

Concretamente, em relação ao elemento comunitário, a lógica do capitalismo é a lógica de atomização, destruição dos vínculos comunitários, isolamento do indivíduo, glorificação da separação, do egoísmo, do interesse utilitário. Não é só a ideologia mas o próprio funcionamento do sistema que opõe os indivíduos uns aos outros. Volto ao exemplo do automóvel. Basta entrar em uma avenida para que o indivíduo, qualquer que seja sua subjetividade, entre numa guerra de todos contra todos.

Mas existem pontos de resistência. O próprio movimento operário em sua origem colocava-se como uma alternativa comunitária ao individualismo, baseada em valores de solidariedade, coletivos, recriando concretamente relações comunitárias. Era o caso, por exemplo, dos sindicatos que permitiam que se estabelecesse uma relação mais profunda, humana entre os trabalhadores de uma mesma fábrica. Ou mesmo da organização revolucionária em seu tipo ideal.

E, nos dias de hoje, das comunidades de base da Igreja, associações de bairros, núcleos de mulheres, movimentos culturais, que buscam constituir-se em alternativas comunitárias ao individualismo capitalista.

Estas estruturas comunitárias se apoiam, pelo menos parcialmente, dependendo dos países e das tradições, em hábitos mentais ou elementos da memória anterior, referindo-se a tradições pré-modernas, pré-capitalistas, principalmente rurais. No Terceiro Mundo onde a maior parte da população é de origem rural, este potencial comunitário pode ser reavidado pelos sindicatos, partidos, associações de moradores, movimentos de base. Estas entidades ou movimentos não devem ser simplesmente uma associação em função de certos interesses comuns; são isso, mas têm que ser mais, têm que estimular relações de tipo comunitário, relações solidárias.

Mas há um retrocesso da contra-cultura operária. E o capitalismo vai esgarçando as referências às formas de vida pré-capitalistas. No Brasil, em uma ou duas gerações, isso desaparecerá.

É verdade. Mas o próprio funcionamento do capitalismo vai provocando, como uma reação contra a atomização, a busca de comunidade. É claro que essa busca muitas vezes dá errado. Está é uma das razões do enorme sucesso das seitas protestantes na América Latina, que oferecem uma acolhida comunitária ao indivíduo abandonado neste deserto urbano, onde ele se sente parte de alguma coisa. Depende de nós oferecermos outras alternativas.

Qual o desafio posto ao restabelecimento de um projeto socialista e um horizonte utópico dotado de credibilidade e peso necessários para referenciar a transformação social?

Marx e Engels viveram numa época em que o problema da utopia parecia algo anacrônico: tratava-se então de desenvolver as contradições do capitalismo, de luta de classes. Isso continua justo, mas hoje em dia não estamos mais numa situação em que possamos dizer: “não sabemos o que vai ser o socialismo”. Não podemos manter esta atitude com a carga pesadíssima de setenta anos de “socialismo real”.

A credibilidade do projeto socialista exige de nós a produção de um paradigma atraente do socialismo que queremos, explicando porque ele não tem nada a ver com o chamado socialismo real. Para retomar Ernst Bloch, hoje o socialismo científico tem também que ser utópico, num sentido quase etimológico, daquilo que não existe ainda em lugar nenhum.

Para que nossa proposta seja crível, ela tem que explicitar o que é essa coisa que nós chamamos socialismo, no que ele se distingue de uma variante mais humana do capitalismo e do pseudo-socialismo real, porque vale a pena lutar por ele, arriscar a pele. Devemos esta explicação aos nossos militantes, aos trabalhadores, às mulheres, aos jovens. Sem utopia revolucionária não haverá prática revolucionária. Precisamos, então avançar neste terreno.

Não partimos do zero, evidentemente. Existe todo um capital acumulado pelo próprio marxismo que temos que desenvolver. Há também as experiências históricas, seus limites, seus erros, toda nossa discussão sobre a democracia socialista na transição ao socialismo etc. Mas temos que ser bastante abertos e estarmos dispostos a aprender com outros, como os socialistas utópicos, os socialistas heterodoxos, os anarquistas. São idéias e experiências importantes para a discussão do socialismo que queremos. Isso além dos novos problemas colocados como a questão ecológica ou o feminismo. Precisamos começar a elaborar — seja sob forma programática, seja na forma literária — especulações, reflexões, projetos, sonhos acordados, como diz Bloch, do que poderia ser um futuro socialista.

É importante aí retomar a dimensão utópica de algumas idéias do marxismo, por exemplo, a de que no socialismo há produção de valores de uso e não de valores de troca; está é uma idéia que tem potencial utópico muito forte. O que significa isso para a produção, para o consumo? O problema é sair de um postulado e tentar ver a coisa de outro totalmente diferente.

E, finalmente, reconhecer que não temos resposta para tudo, que em algumas questões estamos tateando.

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