Os Bois
Os Bois
*Franklin Maciel
Todas as tardes os bois eram recolhidos até o curral da fazenda. Pela manhã, um boiadeiro após contá-los, abria as porteiras e conduzia-os até o pasto onde passavam o dia todo pastando, para engordar o mais rápido possível e poderem ir para o corte. Ao fim do dia, o boiadeiro ia buscar a boiada e todos os bois, um atrás do outro iam entrando de volta ao curral até que o último boi passasse e o boiadeiro fechasse a porteira.
Os bois estavam tão acostumados a esta rotina que mesmo quando o boiadeiro esquecia aberta a porteira, nenhum boi por ela saia.
A cada dois dias, vinha o boiadeiro acompanhado de outro funcionário da fazenda que dentre os bois da boiada, escolhia aquele boi mais forte e parrudo e, diante de toda a boiada passiva, ia conduzindo o bicho pelo laço sem que este impusesse qualquer resistência para o seu destino, por todos os bois ignorado.
Estas manhãs eram precedidas de grande tensão entre os bois. Sabiam os bois que todo boi escolhido pelo funcionário nunca mais voltava à boiada, nunca mais era visto por nenhum outro boi. Era um dia de muita emoção, de despedidas, de medo e incertezas, mas por maiores que fossem essas emoções e por mais fortes que fossem os bois em comparação aos homens, nenhum boi esboçava a menor reação.
Vendo o clima de aflição que assomava toda a boiada a cada dois dias, um velho touro que deste amargo destino escapara por ser reprodutor, inventou-lhes uma história de que o fazendeiro generoso que era, a cada dois dias sorteava um boi, geralmente o mais forte e belo da boiada, para receber a merecida liberdade.
Aliviados e convencidos pelo velho touro, os bois motivados com a idéia de liberdade, começaram a comer mais e mais o pasto para ficarem mais fortes e parrudos mais rápido e assim conquistarem o coração do fazendeiro e serem eles os escolhidos para sair daquela rotina de gado ao qual estavam destinados.
E por um tempo, os bois até começaram a esperar ansiosos pelos dias em que o funcionário vinha escolher entre a boiada o “sortudo” que conquistaria a tão sonhada liberdade.
Tudo ia bem até que um corvo que havia pousado na beira da cerca observou admirado aquela cena dos bois contentes diante de tão trágico fim e resolveu perguntar o porque de tanta alegria diante de tamanho infortúnio.
Os bois, admirados com o pessimismo do pássaro explicaram que estavam contentes porque de dois em dois dias um deles era escolhido para ser libertado daquele cárcere tão tedioso.
Libertado?! Disse o corvo. - Vocês devem ter ficados todos malucos! Cada boi levado pelo empregado é morto, esquartejado e seus pedaços vendidos em açougues para que os homens o comam.
Você deve estar enganado, bem que dizem ser os corvos aves de mal agouro! Respondeu-lhe os bois.
Se fôssemos sacrificados como você diz, aonde estaria então a generosidade do fazendeiro dita pelo touro?
E vocês acreditaram naquele touro? Retrucou o corvo – Porque acham que ele é o único que conseguiu sobreviver todos esses anos? Homens generosos com os bois, essa é boa! O homem é o único bicho que não é generoso com ninguém, nem com o próprio homem!
Eles tem tratado de vocês todo esse tempo dando pasto para vocês engordarem para depois matá-los e vender suas partes para outros homens comerem cada pedaço!
Se duvidam do que digo, por que então imaginam que na direção para onde os bois são levados, há sempre um monte de urubus rodeando? Porque, se agora são livres, nenhum boi voltou para visitá-los? Não, amigos, infelizmente não há dúvidas, para lá são levados para serem sacrificados e mortos!
E a cruel realidade se abateu por toda a boiada.
A cada dois dias era aquele suplício. Morriam um pouco de véspera e só recuperavam um pouco do ânimo quando, respirando aliviados, viam que o boi escolhido era o vizinho e teriam assim a garantia de mais dois dias de vida, uma vida lastreada na covardia.
Não mais existia a velha ilusão de liberdade convenientemente vendida pelo touro e facilmente abraçada pela covardia coletiva na qual se agarrar, só tinha restado a certeza que seu trágico destino hora ou não ia chegar, e que chegada a hora, não tinha como escapar, era questão apenas de aceitar um destino irremediável de gado.
Nascidos bois, tinham que se conformar com uma vida de boi e com uma morte de boi. E resignados e abatidos, aceitaram sua triste condição sem esboçar a menor luta, a menor reação.
Por muito tempo, um a um, boi a boi, foi sendo levado a cada dois dias para a morte sem relutar. Enquanto velhos companheiros iam, outros chegavam para reintegrar a boiada já certeiros do mesmo destino. Até que um dia, trouxeram um jovem boi arredio, um boi do mato que havia sido caçado pelo fazendeiro na mata ao lado da fazenda, um legítimo boi Marruá, que com muito custo foi colocado pelos peões da fazendo junto à boiada.
O boi Marruá ao tomar contato com aquela nova realidade não se conformava e não aceitava toda aquela passividade de toda a boiada antes fim tão cruel e certeiro e sempre questionava:
Como assim se entregar? Nós temos que lutar pela nossa vida, pela nossa liberdade! Olhem bem para nós, olhem bem para si mesmos, não veem o quanto somos muito mais fortes que eles? E quantos somos nesta boiada? Não somos nós em muito maior número que aquela meia dúzia de peões magrelos? Por que então tanto medo? Temos de reagir, não podemos continuar a aceitar naturalmente essa assassinato diário da nossa gente!
Mas os bois, acostumados a desistir de suas vidas e lutas, apesar de sentir e enxergar a verdade contida nas palavras e atitudes de Marruá, não tinham coragem de arriscar, e, tentavam a todo custo demover Marruá das suas investidas, dizendo-lhe que de nada adiantava lutar, que devia como todos os outros bois se conformar e aceitar como boi, seu destino de boi.
Mas Marruá não se convencia, tinha vindo da mata, sabia que a vida era muito maior que aquela condição apática onde toda aquela boiada se encontrava, sabia que nenhuma criatura de Deus nasceu com o mero destino de servir ao capricho de outro espécie que a cria apenas pelo luxo vulgar de se sobrepor sobre o outro.
Não, Marruá queria muito mais da vida e ia lutar por ela até o último de seus dias.
E toda vez que o funcionário da fazenda se aproximava da boiada para escolher o boi sacrificado do dia, Marruá se enfurecia e tentava de todas as formas impedir que conseguissem levar mais um boi, mesmo que esse próprio boi resignado, apático, já tivesse aceitado, sem reagir nem lutar, seu trágico destino.
E Marruá criou tanta confusão que os peões resolveram separá-lo do resto da boiada durante a volta do pasto, colocando-o solitário num cercado vizinho.
Mas mesmo assim, Marruá não dava trégua, se debatia contra as cercas, mugia tentando inutilmente incitar os outros bois a ajudar o boi que seria imolado mas, nada, até que um dia conseguiu escapar e enfurecido, correu até os homens e acabou ferindo gravemente o filho do fazendeiro.
O fazendeiro que cuja fortuna advinha da matança dos bois, não podia aceitar que um boi tivesse ferido seu filho, então mandou a peonada sacrificar na próxima investida, o boi Marruá.
Os peões que tinham aprendido a respeitar a bravura do boi tentaram sair de fininho, mas o fazendeiro estava resoluto e como os bois, os boiadeiros nada mais fizeram do que aceitar seu destino e enfrentar a fera.
O dia em que enfretaram Marruá nunca mais foi esquecido naquela fazenda.
Um a um os homens entram munidos de laços, chicotes e toda sorte de instrumentos para vencer Marruá e só o que se via era peão voando para todo quanto é lado. Marruá não se entregaria jamais, e foi bonito ver a bravura daquele boi frente aquele monte de homens assustados.
Os bois ao lado assistiam a tudo e saindo do marasmo peculiar começar a instintivamente torcer por Marruá. A bravura e coragem de Marruá, de certa forma, começou a renovar as esperanças de todos aqueles bois já nascidos cansados e começaram a acreditar que de repente, Marruá tinha razão, que os bois eram mais fortes e valentes que os homens e que talvez pudessem vencer a opressão.
Então chegou o patrão. Soturno, apeou de seu cavalo, com a cartucheira na mão. E foi se dirigindo à Marruá que o encarou bem dentro dos olhos, então covardemente, o fazendeiro puxou o gatilho e acertou em cheio com dois cartuchos o peito de Marruá que enfim caiu.
Marruá guerreiro, ainda se levantou mais uma vez, mas, ao invés de ir até o fazendeiro, foi até a cerca para junto de seus irmãos, e antes de morrer, olhou dentro dos olhos de cada boi ali parado diante da cerca e enfim tombou, com seu corpo de seu lado da cerca e a cabeça do lado da cerca junto à boiada pela qual tanto lutou e cumpriu a promessa de morrer sem desistir.
Foi a primeira vez que aqueles bois presenciaram com seus próprios olhos a morte de um de seus irmãos, pelas mãos cruéis do homem. Ainda mais a morte de um herói entre os bois. E um a um, começaram a mugir em honra ao tão valente Marruá.
O fazendeiro covarde, subiu em seu cavalo, deu instruções aos empregados e a galope correu para a sede da fazenda.
E os bois mugiram a noite toda em vigília, próximos ao corpo de Marruá, cujos empregados não tiveram coragem de tirar do lugar.
No manhã seguinte, quando o boiadeiro chegou para levar o gado para pastar, nenhum deles arredou o pé, nenhum deles saiu do lugar.
Tomados por um misto de revolta, tristeza e apatia, os bois perderam a vontade até de viver, perderam a fome, não quiseram pastar. Tudo o que queriam era ficar ali a lamentar a morte do bravo guerreiro Marruá.
O boiadeiro correu até o fazendeiro para contar-lhe o que estava acontecendo que, diante da situação, só viu uma solução: enviar o velho touro entre os bois para que estes os convencesse à tocar a vida adiante.
E assim aconteceu. O velho touro, com sua peculiar prudência e malícia de ancião, como um experiente político tratou de solidarizar-se à agonia de todos os bois e pos-se num primeiro momento à elogiar as qualidades do boi Marruá. Chegou até a propor que todos uma vez por ano, fizessem uma festa em homenagem ao valente boi Marruá.
Quando percebeu que havia conquistado a atenção de toda a boiada com sua mentirosa epopéia, o velho touro começou então a direcionar mais uma vez seu discurso com o intuito de manipular os bois à seguir adiante com a vida, a voltarem à velha rotina de boi de engordar e esperar a morte chegar. Chegou até a usar o exemplo de Marruá para demonstrar como de nada adiantava lutar, que esta era a sua vida, que deveriam voltar a se conformar.
E ouvindo as palavras do touro, os bois cabisbaixos foram saindo um a um em fila em direção ao pasto como quem segue uma via crucix na certeza cruel de que sua hora vai chegar.
Passsados dois dias, tudo aparentemente havia voltado à sua rotina. Então lá estava mais uma vez o empregado da fazenda abrindo a porteira para escolher o boi-sacrifício da vez.
O boi escolhido, como era de se esperar, não impôs qualquer resistência, foi seguindo o funcionário com os olhos perdidos de quem desistiu da vida, de quem aprendeu à se contentar.
E assim seguiam em meio à toda boiada, mais uma vez paralisada, passiva, diante da situação até que toparam com um jovem bezerro.
O bezerro postou-se à frente do empregado da fazenda e, assim como Marruá, não o deixava passar. O empregado o empurrava, xingava, batia e nada do bezerro arredar pé do lugar. Foi-se estabelecendo um clima de tensão em meio a boiada. Rodeado pelo bois, o empregado começou a temer por sua vida, então gritou aos companheiros boiadeiros que chamassem o patrão para resolver mais essa situação.
O patrão chegou em seu cavalo, com a arrogância que lhe era peculiar, entrou a galope no meio da boiada, naquele momento assustada diante de toda a situação, apeou e mais uma vez tirar da sela a cartucheira com a qual covardemente matara Marruá.
Logicamente, o fazendeiro não tinha a menor intenção de atirar. Sabia que estava no meio da boiada, e que um tiro poderia provocar um tumulto tão grande e de tal proporções, que seria impossível de controlar. Mas o fazendeiro também sabia o poder do símbolo que trazia em suas mãos, sabia que a lembrança do poder da cartucheira ainda estava bem viva no coração da boiada, que bastava ameaçar que todos, como sempre fizeram, iam se sujeitar. E assim o fez, com gritos e impropérios, balança pelo ar a cartucheira afim de desempacar o obstinado bezerro que, mesmo assim, não arredou um milímetro do lugar.
O fazendeiro então ficou enfurecido vendo que suas ameaças não produziam o efeito que esperava, e sabia que, se não fizesse nada, se deixasse aquele bezerro provar diante de todos que, ao resistir, as coisas podia mudar, tudo estaria perdido, nunca mais conseguiria impor sobre a boiada sua pretensa superioridade e assim, nunca mais teria bois mansos para o seu matadouro.
Então, num ato de selvageria e raiva, começou a bater com fortes coronhadas da cartucheira no pobre bezerro que tombou. Não contente, continuou a bater e a bater no bezerro diante de toda aquela aglomeração de bois que á tudo aquilo assistia sem coragem para intervir. Foi então que o fazendeiro, sentindo-se mais uma vez dono da situação, engatilhou sua cartucheira para dar cabo de vez do pobre bezerro.
Buuummm!!!
E num coice dado por um boi que a tudo assitia, o fazendeiro voou pelos ares!
Os bois então agitados, perceberam sua força e começaram a pisotear o fazendeiro com a mesma forma implacável com que este batia sem dó no bezerro. E pisaram e repisaram tanto no homem que este acabou retalhado em pedaços menores que os pedaços nos quais os bois foram sendo reduzidos por anos em seus frigorificos.
O empregado que costuma levar os bois também não teve melhor sorte, e acabou massacrado pela boiada enfurecida, assim como todo peão que tentou se meter a besta no meio do estouro da boiada.
Os bois então, rebelados, arrebataram as cercas e correram o mais rápido que puderam até a mata donde viera Marruá e lá enfim, todos os bois, descobriram a liberdade, se tornaram marruás e descobriram que nada na vida vem pronto, e que a sorte, é a união de cada um quem faz.
Franklin Maciel
Comentários
muito bom. e quem é o autor desse texto?
os leitores gostariam de saber.
Je revien.
Este texto é de minha autoria, é aprte integrante do meu próximo livro à ser lançado no ano que vem: "O Encantador de Sonhos - Contos de fadas dos dias de hoje"
Pércila
Parabens pela fabula. Gostaria de saber se voce me autoriza a reproduzi-la para distribuição para clientes de meu restaurante que se chama MARRUÁ. abraço. cesar fernando