A Economia Real está Corroída feito um Cancer
ENTREVISTA Para o jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues, a crise do capitalismo é estrutural, e não cíclica, e os senhores da finança não têm soluções para ela; gigantescas lutas sociais se esboçam no horizonte.
Nilton Viana
da Redação
O MUNDO ESTÁ num caos. É assim, como Fidel Castro, que o jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues vê o atual cenário mundial. Segundo ele, Obama mente conscientemente ao repetir exaustivamente que o pior da crise já passou. “Nos EUA e na União Europeia vão ser suprimidos muitos milhões de postos de trabalho para ‘modernizar e racionalizar a produção’, avalia Urbano. Para ele, a economia real está corroída por um câncer, e gigantescas lutas sociais se esboçam no horizonte. E afirma: “a crise do capitalismo é estrutural, e não cíclica, e os senhores da finança não têm soluções para ela.”
Em entrevista, Urbano fala também sobre a Assembleia Geral da ONU, na qual, segundo ele, na caixa de ressonância única, foram proferidos discursos de sinal contrário; analisa o quadro atual da América Latina – o golpe militar em Honduras, as bases militares na Colômbia – e reafirma sua total solidariedade com a Revolução Bolivariana, “baluarte na América do Sul da luta anti-imperialista”. Mas adverte: “Para transformar uma sociedade capitalista numa forma de organização socialista com ela incompatível, a receita não pode ser uma teorização confusa e contraditória que rejeita ou ignora a herança de Marx, Engels e Lenine”.
Brasil de Fato – Passado mais de um ano da eclosão da crise no centro do capitalismo, uma das maiores enfrentadas pela humanidade nos últimos séculos, que avaliação o senhor faz do momento atual?
Miguel Urbano Rodrigues – O mundo está num caos, como tem afirmado Fidel Castro. A responsabilidade da crise de civilização que a humanidade enfrenta – econômica, financeira, social, cultural, política, militar, energética, ambiental – é do capitalismo.
As medidas adotadas pelos capitalistas têm, de certa forma, amenizado os efeitos da crise? Como o senhor avalia essas medidas? Elas são apenas paliativas?
As medidas adotadas pelos governos dos países industrializados variam de Estado para Estado. A recente reunião do G-20 em Pittsburgh (leste dos EUA) iluminou divergências profundas entre os poderosos e os chamados “emergentes”. O G-20 decidiu transformar-se num fórum permanente de administração da economia global. Alguns analistas concluíram que foi instituída uma espécie de “nova ordem econômica mundial”. Mas inventam. Na realidade a montanha pariu um rato. As únicas medidas concretas saídas de Pittsburgh foram decididas no dialogo entre EUA e Europa.
Obama tem repetido exaustivamente que o pior da crise já passou. Mente conscientemente. Ele próprio reconhece que, embora o PIB possa voltar a crescer no próximo ano, o desemprego continuará aumentando. Nos EUA e na União Europeia vão ser suprimidos muitos milhões de postos de trabalho para “modernizar e racionalizar a produção”. A economia real está corroída por um câncer, e gigantescas lutas sociais se esboçam no horizonte. A crise do capitalismo é estrutural, e não cíclica, e os senhores da finança não têm soluções para ela.
A crise tende a se agravar mais ou os capitalistas vão conseguir alternativas para controlá-la? Quais consequências ainda virão?
A administração dos EUA e os governos da União Europeia insistem em apresentar a crise como resultado de erros cometidos na área da finança; mas, uma vez corrigidos através de um controle dos mercados financeiros, tudo voltará à normalidade.
Na realidade o sistema está podre. Não é somente a quebra de grandes bancos e a salvação in extremis dos gigantes da indústria de automóvel estadunidense (graças à injeção pelo governo de dezenas de bilhões de dólares) que refletem essa putrefação. A engrenagem da finança que controla o establishment sobreviveu intacta e, no fundamental, impõe a sua vontade à Casa Branca. É significativo que o secretário do Tesouro de Obama seja Geithner, um homem-chave de Wall Street. Igualmente significativa é a impotência do presidente para impor limites aos vencimentos e prêmios bilionários que se atribuem aos banqueiros, responsáveis pelo tsunami financeiro desencadeado. As medidas aplicadas até agora visaram sobretudo a salvar os responsáveis pela crise.
A ONU acaba de realizar sua 64ª Assembleia Geral. A tônica dos discursos, especialmente do presidente do Brasil, foi no sentido de pedir regulação do mercado e reforma das instituições, afirmando que é preciso “construir um novo mundo” após a crise financeira. Que avaliação o senhor faz desse cenário da ONU?
Não subestimo a importância para a Humanidade da Assembleia Geral da ONU. Mas, sendo um órgão consultivo, carece de poder para tomar decisões vinculativas. Esse papel cabe ao Conselho de Segurança, hegemonizado pelos EUA com o apoio firme da França de Sarkozy e do Reino Unido de Brown, dois membros permanentes quase sempre solidários com a estratégia imperial de Washington.
Na atual Assembleia Geral, caixa de ressonância única, foram proferidos discursos de sinal contrário. Os grandes meios de comunicação ocidentais cumpriram o seu papel, privilegiando a oratória humanista de Obama, sugerindo que o presidente tudo fará para lutar por uma paz universal e promover a desnuclearização do planeta. Mas, se despojarmos da retórica a fala do presidente dos EUA, o que dela fica é pouquíssimo.
Dias depois, na reunião do G-20, informou que não exclui a “opção militar” se o Irã não se submeter às exigências dos EUA e dos grandes da União Europeia. Como pode lutar pela paz quem fez da vitória na guerra do Afeganistão a primeira prioridade da política de Washington na Ásia? Como acreditar no pacifismo de um presidente que mantém Robert Gates como secretário da Defesa e nomeou para comandante supremo no Afeganistão o general Stanley Mc Chrystal, um oficial com currículo de criminoso de guerra?
É oportuno lembrar que o discurso de Ahmadinejah – uma veemente denúncia das políticas imperiais e dos crimes do sionismo contra o povo da Palestina – foi praticamente ignorado pela mídia ocidental, que chamou sobretudo a atenção para o fato de as delegações dos EUA e de uma dezena de aliados seus terem se retirado do anfiteatro como forma de protesto. A importante intervenção de Hugo Chávez para condenar o gorilazo de Honduras e exigir solidariedade à luta do presidente Zelaya também mereceu escassa atenção da mídia internacional.
E como o senhor analisa os discursos na Assembleia da ONU sobre a crise mundial, especialmente a participação do presidente Lula?
Não atribuo grande significado aos discursos pronunciados na Assembleia Geral sobre a crise financeira e econômica. Na maioria foram exercícios de retórica. Nada concreto vai resultar dos apelos e sugestões ali formulados.
No tocante a Lula, creio que, em vez de debitar lugares-comuns sobre a necessidade de se “construir um mundo novo”, deveria, como chefe de Estado de uma grande nação, batalhar pela construção de um Brasil verdadeiramente soberano e lutar contra desigualdades afrontosas da condição humana nele existentes, isto é, assumir os desafios que tem desconhecido.
Sobre a América Latina, como o senhor analisa o atual cenário que aqui vivemos?
Numa entrevista como esta, seria cair em banalidades ensaiar uma análise mesmo sintética da conjuntura latinoamericana, tal a diversidade de situações existentes. Limito-me, por isso, a chamar a atenção em primeiro lugar para um fenômeno que é global: a contestação crescente dos povos ao sul do Rio Grande à dominação imperial dos EUA. O fracasso total das políticas do chamado Consenso de Washington criou condições favoráveis à eleição em muitos países de presidentes com programas anti-imperialistas moderadamente antineoliberais.
O andamento da história não tardou contudo a demonstrar que era ingênua a convicção de que essas vitórias eleitorais, em alguns casos esmagadoras, garantiam o respeito pelos compromissos assumidos perante o povo. No Brasil, na Argentina, no Uruguai, as expectativas de mudanças radicais foram rapidamente defraudadas. O economista argentino Cláudio Katz, num brilhante ensaio intitulado, “Socialismo ou Neodesenvolvimentismo”, ilumina bem dois campos com projetos divergentes (para não dizer antinômicos). De um lado identifi camos a opção do Brasil de Lula, da Argentina dos Kirchner, do Uruguai de Tabaré Vasquez. Para os defensores dessa linha de compromissos com o inimigo, a tarefa prioritária seria a construção de um “capitalismo regulado”, dependente, sem os males do neoliberalismo. O Mercosul é o instrumento eficaz desse neodesenvolvimentismo, comandado no fundamental por uma classe empresarial moderna, sucessora da burguesia nacional que tantas esperanças suscitou após a 2a Guerra Mundial.
No outro campo, três países – a Venezuela, a Bolívia e o Equador –, embora sem se afastarem da via institucional, escolheram um caminho diferente. Hugo Chávez e Evo Morales, ao proclamarem a sua opção pelo socialismo, enfrentam-se abertamente com Washington.
No Equador, Rafael Correa não vai tão longe, mas a sua política de defesa intransigente da soberania nacional transformou-o, aos olhos do imperialismo norte-americano, num inimigo. Não lhe perdoam o encerramento da Base de Manta, a expropriação de empresas estadunidenses e a sua firmeza na condenação das intervenções militares, diretas e indiretas, da Colômbia de Uribe.
Numa zona intermediária, três países – a Nicarágua, El Salvador e o Paraguai – são hoje governados por presidentes eleitos por forças progressistas. Não cabe aqui refletir sobre o rumo seguido por cada um deles. Registro apenas que, em El Salvador, Funes, levado à presidência pela Frente Farabundo Martí, tem realizado uma política de compromissos incompatível com as grandes tradições revolucionárias daquele partido.
Na Nicarágua, Daniel Ortega, o veterano dirigente da Frente Sandinista, mantêm relações privilegiadas com a Venezuela e a Bolívia, mas o discurso anti-imperialista não encontra tradução no plano interno, frente em que pratica uma política apoiada pela direita e que não fere interesses do imperialismo.
As importantes lutas travadas pelas forças progressistas do México, do Chile e do Peru inserem-se também na grande onda de rejeição ao neoliberalismo, o projeto a que se submetem os respectivos governos, mas o tratamento do tema extrapola também os limites desta entrevista.
Uma referência indispensável a Cuba: sem a resistência da Revolução Cubana a uma guerra não-declarada e a meio século de bloqueio, a atual mobilização dos povos do hemisfério contra a dominação imperialista dos EUA não teria sido possível.
Para terminar, julgo útil sublinhar que a minha total solidariedade com a Revolução Bolivariana, baluarte na América do Sul da luta antiimperialista, não impede de me distanciar daqueles que na Venezuela identificam hoje, no chamado “Socialismo do Século 21”, a ideologia que apresentam como o guia teórico e prático para a ação libertadora dos povos latinoamericanos. Para transformar uma sociedade capitalista numa forma de organização socialista com ela incompatível, a receita não pode ser uma teorização confusa e contraditória que rejeita ou ignora a herança de Marx, Engels e Lenine.
Que avaliação o senhor faz da crise em Honduras, instalada a partir do golpe militar que derrubou o presidente Manuel Zelaya?
É hoje transparente o envolvimento dos EUA no golpe militar que derrubou o presidente constitucional, Manuel Zelaya. Documentação irrefutável prova que o golpe foi concebido com muita antecedência em reuniões realizadas na sede da missão diplomática dos EUA em Tegucigalpa, com a presença do embaixador Hugo LLorens, um cubano de Miami, naturalizado.
O presidente Obama, é fato, condenou o golpe, mas o Departamento de Estado nem sequer define como “golpe” o cuartelazo; e o Pentágono continua a manter relações especiais com os generais que assaltaram o poder. A sede da Força Aérea Hondurenha funciona, aliás, na Base militar norte-americana de Palmerola. Ou seja, sem a cumplicidade de Washington, a situação em Honduras estaria há muito normalizada.
O Equador não permitiu as bases militares dos EUA. No entanto, a Colômbia cada vez mais torna-se fiel escudeiro do império na região. Como o senhor avalia o acordo entre os EUA e a Colômbia que utiliza bases militares no país?
A decisão do governo Obama de instalar na Colômbia sete bases militares estadunidenses insere-se na continuidade da estratégia de dominação mundial dos EUA. O discurso pacifista e humanista do atual presidente e uma campanha de propaganda massacrante contribuíram para que centenas de milhões de pessoas acreditassem que a política imperial de George W. Bush seria substituída por uma política orientada para o fim das guerras imperiais. Mas isto não ocorreu, como afirmei na resposta anterior.
Não se percebe, aliás, como pode Obama conciliar a política do Departamento de Estado que apresenta a Colômbia como uma democracia respeitada e o fato inocultável de o governo de Álvaro Uribe Velez, aliado preferencial, ter características neofascistas ostensivas. A reunião extraordinária da UNASUR em Bariloche foi, registre- se, convocada para denunciar a instalação das sete bases estadunidenses na Colômbia e identificar nessa iniciativa uma ameaça à segurança das nações da América Latina.
Como é do domínio público, o objetivo não foi atingido. E a responsabilidade cabe em parte ao presidente Lula, que se absteve de criticar Uribe e chegou a ser grosseiro ao dirigir- se aos presidentes Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Cabe ao governo brasileiro uma parcela da responsabilidade por uma Declaração Final inócua.
Fonte: Jornal Brasil de Fato - http://www.brasildefato.com.br/
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