A culpa é da Bolsa
A culpa é da Bolsa
* Franklin Maciel
João se orgulhava de trabalhar de sol a sol
Como o pai e o avô, o trabalho sempre foi
Seu único significado
Acordava bem de madrugada
E antes do canto do galo
Lá estava João, à postos no chão da fábrica
Fabricando sonhos em série
Pro consumo desnecessário
Horas e horas se passavam
No ritmo marcado da produção
Uma pequena pausa pro almoço
5 minutos pro cigarro
E lá estava João de novo
Fiel como um cão sempre domesticado
Na linha de produção
Ao fim do dia, corpo cansado
Mente atrofiada pela rotina
João voltava pra casa
Onde à sua espera
Sempre duas loiras estúpidas e geladas
Uma ríspida, a outra quase viscosa
Porque toda máquina precisa de lubrificação
Desmanchava-se então frente sua única confidente
A televisão
Confidente estranha pois, em vez de ouvir
Só tagarelava sem parar
Preenchendo os vazios na cabeça
E na vida de João
Amiga criativa essa de João
Todo dia sempre inventava
Uma nova forma de tirá-lo da depressão
Oferecendo-lhe alguns sonhos prontos
À prestação.
No dia seguinte, voltava João
À sua orgulhosa rotina diária de trabalho pesado
Pois só com trabalho, pra João, se é dignificado
Mesmo que todo seu trabalho seja voltado
À confecção de coisas fúteis e ao desperdício
Afinal, trabalho é trabalho.
Resignado como um santo à sua condição
Mas não santo, pois este status hoje em dia
É só pra culto do Patrão
O Novo messias da multiplicação do emprego
Mas NUNCA da exploração.
João continuava trabalhando cada dia mais
Ganhando cada vez menos
Na alquimia do mercado
Sempre se reestruturando pra ganhar mais
Fazendo menos, homens como João também
Precisam estar em contínua adaptação
E João que era de barro, agora virou João de Borracha
Polivalente, adaptado à novas pressões e funções
Só a cabeça continuava dura como pedra
Sempre achando que tinha razão
Com essas mudanças constantes, cada dia a fábrica mudava
Sempre aumentando a produção
Mas o mais estranho é que, por mais que se fizesse
Sempre diminuía algum João
O trabalho que era de 5, virou de 4, depois de 2 e agora só João.
João olhava tudo indiferente
Como alguém que não se intromete nas brigas do vizinho
Até que um dia, ao chegar até o portão
Era João que não precisava mais voltar
João pra quem a vida era trabalho
Agora era mais um desempregado
Ao seu lado, iam passando velhos companheiros cabisbaixos
Negando João como Pedro negara Jesus
Antes que o galo cantasse
Num arroubo desesperado
João furou o cerco e correu até o patrão
Que era santo até ontem,
Santo fazedor de empregos
Mas o patrão não estava
O patrão nunca esteve
O Patrão era só um retrato
Feito um santo de barro, uma ilusão.
João atordoado com a revelação
Não sabia o que fazer
Quando alguém pra se livrar de seu incômodo
Disse-lhe que sua salvação estava no Estado
Mas como? Não era o Estado o dragão??
O Estado, deus ocupado e burocrata
Assediado pela multidão de santos quebrados
Não tinha tempo pra atender João
e o mandou voltar depois
Frustrado, João voltou pra casa
Buscar conforto na televisão
Mas essa só falava em crise
Nunca apontava culpados,
Quiçá solução
Entretanto o conselho de sempre
Ainda lhe transpirava:
Compre! Compre de montão!!
Ora, mas como comprar agora
Que não tinha crédito e nem um tostão?
Enquanto o dinheiro desaparecia do alcance de João
Ele dava cria, e se multiplicava aos trilhões
Pra salvar a plantação da especulação
Que quebrara todo mundo
Mas não podia ficar com o pires na mão
João achava aquilo estranho,
Tanto dinheiro pra quem já é patrão
Mas a televisão repetia o tempo todo
Que essa era a melhor opção
Encha o papo dos porcos
Que algumas migalhas certamente sobrarão
Pra população
E João como um cão esperava seu dono
Um dono que o deixou pela avenida
Mas que tinha esperança que um dia
Voltava pra lhe buscar
E fazer a partilha do dinheiro que ganharam
Distribuído em empregos no varejo.
Mas o milagre do emprego não vinha
E João foi perdendo a fé
Sentiu solidão, se sentiu imprestável
Nem mais a televisão assistia
Pra fugir da loucura
Juntou os últimos trocados
E foi às compras na feira
Afinal, comprar sempre foi solução
Pra sua vida de tédio
Olhava uma fruta, olhava um legume
Achava tudo caro demais
E foi colocando na intenção
Cada coisa em sua bolsa
Até que chegou à barraca do pastel
Desses não podia abrir mão
Contou todas as moedas
E pagou com gosto
Enquanto saboreava o pastel de vento
Como sua cabeça
Deu-se conta da sua bolsa ainda vazia
E então decretou!
A culpa é da bolsa!
E assim aceitou sua nova condição
Sem mais reclamações.
Franklin Maciel
Comentários
Um ótimo mix de economia com ciências políticas e drama passional!
Valeu !
Abração,
Luciano
Franklin
Franklin