A Caverna de Platão
O mito da caverna narrado por Platão no livro VII do Republica é, talvez, um das mais poderosas metáforas imaginadas pela filosofia, em qualquer tempo, para descrever a situação geral em que se encontra a humanidade. Para o filósofo todos nós estamos condenados a ver sombras a nossa frente e tomá-las como verdadeiras. Esta crítica à condição dos homens, escrita há quase 2500 anos atrás, inspirou e ainda inspira inúmeras reflexões pelos tempos a fora. A mais recente delas encontra-se no livro de José Saramago A Caverna.
A condição humana
Platão viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou (no Livro VII de A República, um diálogo escrito entre 380-370 a.C.) todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente.
O que veriam então? Supondo a seguir que existissem algumas pessoas, uns prisioneiros, carregando para lá para cá, sobre suas cabeças, estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outros vasilhames, por detrás do muro onde os demais estavam encadeados, havendo ainda uma escassa iluminação vindo do fundo do subterrâneo, disse que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o bruxuleio das sombras daqueles objetos, surgindo e se desafazendo diante deles.
Era assim que viviam os homens, concluiu ele. Acreditavam que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos) eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. A sua existência era pois inteiramente dominada pela ignorância (agnóia)
Libertando-se dos grilhões
Se por um acaso, segue Platão na sua narrativa, alguém resolvesse libertar um daqueles pobres diabos da sua pesarosa ignorância e o levasse ainda que arrastado para longe daquela caverna, o que poderia então suceder-lhe? Num primeiro momento, chegando do lado de fora, ele nada enxergaria, ofuscado pela extrema luminosidade do exuberante Hélio, o Sol, que tudo pode, que tudo provê e vê.
Mas, depois, aclimatado, ele iria desvendando aos poucos, como se fosse alguém que lentamente recuperasse a visão, as manchas, as imagens, e, finalmente, uma infinidade outra de objetos maravilhosos que o cercavam. Assim, ainda estupefato, ele se depararia com a existência de um outro mundo, totalmente oposto ao do subterrâneo em que fôra criado.
O universo da ciência (gnose) e o do conhecimento (espiteme), por inteiro, se escancarava perante ele, podendo então vislumbrar e embevecer-se com o mundo das formas perfeitas.
As etapas do saber
Com essa metáfora – o tão justamente famoso Mito da Caverna - Platão quis mostrar muitas coisas. Uma delas é que é sempre doloroso chegar-se ao conhecimento, tendo-se que percorrer caminhos bem definidos para alcançá-lo, pois romper com a inércia da ignorância (agnosis) requer sacrifícios. A primeira etapa a ser atingida é a da opinião (doxa) quando o indivíduo que ergueu-se das profundezas da caverna tem o seu primeiro contanto com as novas e imprecisas imagens exteriores.
Neste primeiro instante ele não as consegue captar na totalidade, vendo apenas algo impressionista flutuar à sua frente. No momento seguinte, porém, persistindo em seu olhar inquisidor, ele finalmente poderá ver o objeto na sua integralidade, com os seus perfis bem definidos.
Ai então ele atingirá o conhecimento (episteme). Esta busca não se limita a descobrir a verdade dos objetos, mas algo bem mais superior: chegar à contemplação das idéias morais que regem a sociedade - o bem (agathón) , o belo (tokalón) e a justiça (dikaiosyne).
O visível e o inteligível
Há pois dois mundos. O visível é aquele em que a maioria da humanidade está presa, condicionada pelo lusco-fusco da caverna, crendo, iludida, que as sombras são a realidade. O outro mundo, o inteligível, é apanágio de alguns poucos. Os que conseguem superar a ignorância em que nasceram e, rompendo com os ferros que os prendiam ao subterrâneo, ergueram-se para a esfera da luz em busca das essências maiores do bem e do belo (kalogathia).
O visível é o império dos sentidos, captado pelo olhar e dominado pela subjetividade; o inteligível é o reino da inteligência (nous)percebido pela razão (logos). O primeiro é o território do homem comum (demiurgo) preso às coisas do cotidiano, o outro, é a seara do homem sábio (filósofo) que volta-se para a objetividade, descortinando um universo diante de si.
O desconforto do sábio
Platão então pergunta pela boca de Sócrates, personagem central do diálogo A República o que aconteceria se este ser que repentinamente descobriu as maravilhas do mundo dominado por Hélio, o fabuloso universo inteligível, descesse de volta à caverna? Como ele seria recebido? Certamente que os que se encontram encadeados fariam mofa dele, colocando abertamente em dúvida a existência desse tal outro mundo que ele disse ter visitado.
O recém-retornado certamente seria unanimemente hostilizado e ridicularizado. Dessa forma Platão traçou o desconforto que o sábio sente quando é obrigado a conviver com os demais seres comuns, presos à ignorância. Não acreditam nele, não o levam a sério. Imaginam-no um excêntrico, um idiossincrático, um extravagante, um tonto, alguém não dotado de um sentido prático, quando não um rematado doido (stino comum a que a maior parte dos cientistas, inventores, e demais revolucionários do pensamento tiveram que enfrentar ao longo da história)
Quais as alternativas
Deveria, por essa razão, o sábio desistir? O riso e o deboche com que invariavelmente é recebido, tomando quase sempre como um homem que vive com a cabeça metida nas nuvens, fariam com que ele devesse se afastar do convívio social? Quem sabe não seria preferível o isolamento num retiro solitário qualquer, com as costas voltadas para a cidade.
Hostil à idéia da vida monacal ao estilo dos pitagóricos, Platão foi incisivo: o conhecimento do sábio deve ser compartilhado com seus semelhantes, deve estar à serviço da cidade. O filósofo cheio de sabedoria e geometria que leva uma existência de eremita, acreditando-se um habitante das ilhas afortunadas, sem ter contato com ninguém de nada serve. Isto porque a lei não se preocupa em assegurar a felicidade apenas para uma determinada classe de cidadãos (no caso, os sábios), mas sim se esforça para “realizar a ventura da cidade inteira”.
A liberdade que os sábios parecem gozar - o conhecimento dá aos seus portadores a sensação de liberdade - não é para eles “se voltarem para o lado que lhes aprouver, mas para fazê-los concorrer ao fortalecimento do laço do Estado”.
O governo dos sábios
Platão não ficou apenas na recomendação de que os sábios devem socializar o conhecimento. Ousou ir bem mais além. Justamente por eles, os filósofos, serem menos “apressados em chegar ao poder” (sabendo perfeitamente distinguir o visível do inteligível, a imagem da realidade, o falso do verdadeiro), é que eles devem ser chamados para a regência suprema da sociedade.
A sua presença impediria as sedições e as intermináveis lutas civis internas travadas entre políticos ambiciosos, desacertos tão comuns entre os diversos pretendentes rivais, “gente ávidas de bens particulares”, sempre em luta, divergindo com espadas e não com idéias ou palavras na tentativa de ficar com o poder.
O governo da cidade, a Platonópolis a ser erguida no futuro, caberá pois aos mais instruídos, os que possuiu tékne politikos, uma especialidade de conhecimentos que manifestam mais indiferença ao poder, ainda que seja a característica do sábio “o desprezo pelos cargos públicos”, pela simples razão deles terem sido os únicos a terem vislumbrado o bem, o belo e o justo (agathos, kalos e dikê).
Os dois mundos de Platão
Mundo visível
# A sua geografia limita-se ao espaço sombrio da caverna.
# Caracteriza-se pela escuridão, é um mundo de sombras, de lusco-fusco, de imagens imprecisas (ídolos).
# Nele o homem se encontra encadeado, constrangido a olhar só para a parede na sua frente, ficando com a mente embotada, preocupando-se apenas com as coisas mesquinhas do seu dia-a-dia.
# Homem dominado pelas sensações e pelos sentidos mais primários.
# Em situação de desconhecimento e ignorância (agnosis).
# Condição em que se encontra o homem comum.
Mundo Inteligível
# É todo universo fora da caverna, o espaço composto pelo ar e pela terra inteira.
# Dominado pela claridade exuberante de Hélio, o Sol que tudo ilumina com seus raios esplendorosos, permitindo a rápida identificação de tudo, alcançando-se assim a ciência (gnose) e o conhecimento (episteme).
# Plenitude do homem liberto da opressiva caverna, podendo investigar e inquirir tudo ao seu redor conhecendo enfim as formas perfeitas.
# Homem orientado pela inteligência (nous) e pela razão (logos).
# Em condições de cultivar a sabedoria e a busca pela verdade e pelo ideal da junção do bem com o belo (kalogathia).
# Condição do filósofo.
Terra Educação - Voltaire Schilling
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