Esquerda e direita no Brasil, hoje
Esquerda e direita no Brasil, hoje
Leandro Konder
Ninguém pode pretender negar diversos progressos no movimento da história. A humanidade, hoje, se beneficia de conquistas importantes na área da medicina, por exemplo. Podemos ser operados com anestesia, suavizar dores com analgésicos. Dispomos de meios de transporte rapidíssimos, helicópteros, aviões. Nossas casas têm luz elétrica, água encanada, esgoto. Vemos filmes, acompanhamos seriados na TV, ouvimos rádio. E, cada vez mais, utilizamos os computadores, a internet.
A ideologia dominante insiste em nos convencer que as desigualdades sociais são naturais, que o socialismo fracassou
Tal como está organizada, a sociedade gira em torno do mercado, de acordo com um sistema que alguns chamam de “economia de mercado”, e outros, de “capitalismo”. Até hoje, não surgiu nenhum sistema tão capaz de fazer crescer a economia. As experiências feitas em nome do socialismo não manifestaram força própria suficiente para competir, no plano do crescimento econômico, com o capitalismo.
O modo de produção capitalista não tem vocação suicida, e nada indica que ele esteja a ponto de morrer de morte natural. Seus representantes na arena política recorrem à repressão quando necessário e fazem concessões quando conveniente. Os trabalhadores têm feito conquistas significativas, do século 20 para cá; visivelmente não sentem saudades do tempo em que eram obrigados a jornadas de trabalho de 12 horas.
Parte dos trabalhadores -mais que no passado- chega mesmo a integrar-se à burguesia. Esse, porém, é um caminho que só pode ser percorrido por poucos. Alguns progridem. Faz parte da lógica do sistema, contudo, que as massas permaneçam excluídas. A cooptação de setores da representação política das classes médias está sendo mais resoluta, mais eficiente. O individualismo característico dessas confusas camadas intermediárias as torna muito vulneráveis à sedução das classes dominantes.
Temos uma situação histórica favorável ao bloco conservador. Nas atuais condições, a direita vem administrando suas contradições internas. A política econômica do governo do PT, as posições neoliberais do PSDB e as diferentes tendências reunidas no PMDB tranqüilizaram a direita nos últimos anos. Tanto no PT como no PSDB e no PMDB os líderes posicionados um pouco mais à esquerda (não quer dizer que eles sejam de esquerda) foram marginalizados.
A esquerda está desarticulada. O naufrágio da União Soviética não arrastou só os partidos comunistas: mais de 15 anos se passaram, e o estilhaçamento ainda afeta dolorosamente diversas organizações socialistas.
No Brasil, o quadro é complexo, angustiante. Há pessoas de esquerda no PT, no PC do B, no PSB, no PDT e até no PSDB. Há muita gente de esquerda circunstancialmente sem partido. E há a valente iniciativa da senadora Heloisa Helena, o PSOL. Mas ainda não há um programa alternativo maduro que se contraponha à euforia do programa conservador, aplicado por gente que foi de esquerda e aplaudido pela direita.
Nas atuais condições em que exerce a sua hegemonia, a direita “moderada” conseguiu infiltrar seus critérios no discurso da esquerda “moderada”. Os “moderados” dão o estilo. O conteúdo é dado pela “leitura” oficial da economia.
Antigamente, eram os marxistas que polemizavam em torno da economia, apoiados no “materialismo histórico”. Alguns chegaram a falar num “materialismo econômico”. Tinham a convicção de que estavam na crista de uma onda que os empurrava inexoravelmente para adiante, para promover a transformação das relações de produção e o crescimento das forças produtivas.
A fé determinista na dinâmica da economia contribuiu para que a esquerda tradicional, despreparada, sofresse contundentes derrotas. Duras lições da história política convenceram a esquerda a conviver com sua diversidade interna, em sua luta pela ampliação das liberdades e pela superação das desigualdades.
A economia é um nível essencial da realidade histórica; nela, os seres humanos agem, fazem escolhas, tomam iniciativas. Não há nada de inexorável em seus movimentos. Os marxistas se dispuseram, então, a discutir as motivações dos sujeitos que modificam a realidade objetiva. Passaram a debater idéias extraídas de Gramsci, Lukács, Adorno.
Curiosamente, no momento em que os marxistas (e, com eles, a esquerda em geral) sublinhavam a significação crucial dos valores, da ética, a direita assumia a centralidade da economia e passava a acreditar que possuía a chave da compreensão correta (e da solução) dos problemas que nos afligem no presente.
Essa chave é o instrumento simbólico mais eficiente da ideologia dominante (que, como dizia Marx, é sempre a ideologia das classes dominantes): é ela que insiste em nos convencer que as desigualdades sociais são naturais, que não há alternativa para o capitalismo, que o socialismo já foi tentado e fracassou. É ela que sustenta que as liberdades precisam se enraizar nas elites para depois, lentamente, chegar ao povão. Empunhando a chave, com a costumeira cara-de-pau, a direita pede paciência aos trabalhadores e promete que, com o tempo, eles vão se beneficiar de melhores condições materiais de cidadania, tal como aconteceu com as conquistas da medicina, os aviões e os computadores, que demoraram, mas vieram.
Permito-me perguntar: vieram mesmo?
Leandro Konder, 70, advogado, doutor em filosofia pela UFRJ, é professor titular de filosofia da educação da PUC-RJ. É autor, entre outras obras, de “Filosofia e Educação” (no prelo) e “História das Idéias Socialistas no Brasil”
Fonte: TENDÊNCIAS/DEBATES (Folha de São Paulo, 13/04/2006)
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