O Dilema de Barck Obama
O Dilema de Obama
Seu discurso realça a luta por direitos para todos na era pós-industrial. Sua história de vida encarna a esperança de outra globalização possível. Suas posições estão bem à esquerda da média do Partido Democrata. Mas como ele enfrentará o desafio da disputa eleitoral, num país marcado pelo conservadorismo?
John Gerring e Joshua Yesnowitz
Além de uma campanha eleitoral clássica, a candidatura de Barack Obama é um movimento, como revelam as multidões eletrizadas que comparecem a seus encontros, as dezenas de voluntários que o apóiam e mais de um milhão de pequenos doadores. Este movimento agregou uma grande quantidade de novos eleitores ao processo de escolha do Partido Democrata, particularmente jovens e independentes [1]. Como resultado deste entusiasmo, o comparecimento às primárias e caucuses do Partido Democrata alcançou um recordes históricos. Aparentemente, Obama injetou nesta disputa um calor que esteve ausente por muitos anos [2].
E no entanto, há enormes diferenças de opinião sobre o significado da candidatura de Barack Obama. Para seus eleitores, ele é uma força fundamentalmente nova para a política norte-americana, já que vai além do partidarismo e convida a ultrapassar um jogo eleitoral viciado. Para seus oponentes no Partido Democrata (aqueles que apóiam a candidatura da senadora Hillary Clinton), ele é um espalhafatoso vulgar, combinando juventude e inexperiência. E para os partidários ao republicanismo, é um sujeito fascinante, mas que não tem nada de misterioso: um progressista ultrapassado, desejoso de redistribuir a renda por meio de impostos, pouco diferente daqueles que o precederam.
Cada uma destas perspectivas contém elementos de verdade. Porém, o que este homem traz de novo, seu ineditismo, e também sua história de vida, têm fornecido um amplo acervo para os diversos palpites. Tendo um pai do Quênia e uma mãe do Kansas, Obama foi criado no Havaí e na Indonésia, para onde sua mãe se mudou a fim de aprofundar suas pesquisas de doutorado em Antropologia (e onde acabou se casando de novo, o que deu a Obama um padrasto Indonésio). Ele freqüentou a faculdade na Califórnia (Occidental) e em Nova Yorque (Columbia), depois mudou-se para o Sul de Chicago, onde foi organizador de comunidades, até receber seu diploma de Direito em Massachussetts (Harvard). Não é de surpreender que Barack Hussein Obama tenha servido como um pergaminho de diversas camadas, sobre o qual o mundo projetou muitos dos grandes temas contemporâneos.
Barack Obama é um mensageiro, mas não um arquiteto do moderno Partido Democrata. Exotismos à parte, a candidatura de Obama está fincada nas questões que agora são tradicionais do Partido Democrata. Do fim do século 19 até a metade do século 20, as causas do partido eram definidas pela oposição à concentração de poder e dinheiro na sociedade norte-americana. Candidatos democratas à presidência – incluindo William Jennings Bryan (em 1896, 1900, 1908), Woodrow Wilson (1912, 1916), Franklin Roosevelt (1932, 1936, 1940 e 1944), e Harrry Truman (1948) – fizeram campanha pelo “povo” e contra os “interesses [privados]”. Eram marcados por uma visão plebiscitária do poder político, em que as pessoas comuns se juntavam para governar diretamente (ou o mais diretamente possível), e conchavos “privados” entre representantes do poder eram considerados corruptos, plutocráticos. Nos discursos, investiam contra o poder concentrado dos capitalistas, referindo-se a eles como trusts e Big Business. Contra os privilégios desfrutados pelas elites, os democratas lutavam pelos direitos do homem comum -– este, assumidamente branco e de origem européia. Assim foi era populista da ideologia do Partido Democrata [3].
Mutações no discurso do Partido Democrata. A luta por um “governo da maioria” e a denúncia do Big Business são substituídas pelos “direitos para todos” — inclusive as minorias
Na Era pós-II Guerra, a começar pelas campanhas de Adlai Stevenson (1952,1956), e depois com as de John Kennedy (1960), Lyndon Johnson (1964) e Hubert Humpphrey (1968), o discurso ácido da era populista diluiu-se. O antagonismo das classes sociais foi deslocado. Em seu lugar, entram os novos objetivos políticos e auto-imagem do partido. Os democratas do pós-guerra defendiam as reformas sociais da era progressista e do New Deal, e de vez em quando buscavam estender o alcance destas políticas (especialmente, as de seguridade social). No entanto, em seu discurso público, todas as conotações ligadas à luta de classes desapareciam. No lugar delas, os democratas adotaram a ideologia do universalismo, em que todas as raças, credos e classes pudessem estar envolvidas.
Essa estratégia retórica tinha como objetivo central o desejo de escapar dos possíveis perigos de um comunismo em ascensão (sobretudo, no auge da Guerra Fria), e da crescente impopularidade do movimento trabalhista. Os democratas do pós-guerra raramente faziam apelos ao governo para regular o setor privado; e nunca atacaram o setor do Big Business. Além disto, a adoção de uma ideologia universalista de união nacional não era somente uma ferramenta retórica, por meio da qual se evitavam acusações de práticas de socialismo e não-americanismo. Ela também articulava um novo objetivo político, fundamental para o Partido Democrata.
A partir de 1948, com a adoção do primeiro modelo de direitos civis, os democratas passaram a apoiar o engajamento ativo do governo na garantia de direitos para as mulheres e minorias. No princípio, o significado de minorias ficava restrito aos afro-americanos. Com o passar do tempo, o precedente dos direitos civis aos negros foi se estabelecendo, e o partido passou a defender, da mesma forma os direitos das mulheres, dos hispânicos, dos homossexuais e uma miríade de outros temas, menos etnicistas e mais baseados em causas. Assim, a filosofia dos direitos foi incessantemente estendida. De fato, o partido ao longo do curso do século vinte passou pelo processo de transformação, da ideologia do “governo da maioria” para a ideologia de “direitos das minorias”.
No entanto, o passo seguinte nesta caminhada para a unidade entre irmãos e irmãs acabou não acontecendo. O padrão dos candidatos do partido à presidência inclui apenas homens e brancos. Mulheres e minorias foram encorajadas a votar para os democratas, mas nunca contempladas com a indicação ao posto (ainda que alguns tenham tentado, como Geraldine Ferraro e Jesse Jackson). Agora, depois de pregar a fala da inclusão por meio século, o partido está sendo induzido a dançar conforme a música. Este ano, não importa qual dos dois candidatos for escolhido, tanto ele (Barack) quanto ela (Hillary) vão encarnar, em suas histórias de vida, a marca do Partido Democrata contemporâneo. O único postulante sério com pele branca e cromossomo Y – John Edwards – suspendeu sua campanha após ser davastado nas primárias, em que não ganhou sequer em um estado. É de notar que Edwards promovia uma campanha populista, focada em disparidades de classe e desigualdade de renda, uma estratégia falida para ganhar força.
Obama afirma-se enquanto o ápice da inclusão democrática. Sua vitoriosa história de vida e sua retórica retumbante captam o clima desta era pós-industrial
Dos dois candidatos-líderes, um colocou o tema universalista com maior força que o outro. Enquanto Hillary Clinton apresenta-se como mestre da política, protagonista dos cuidados com a saúde e co-presidente da administração Clinton, Barack Obama afirma-se enquanto o ápice da inclusão democrática. Não somente sua vitoriosa história de vida, como também sua retórica retumbante captam o clima do partido nesta era pós-industrial.
Apresentado a uma platéia nacional pela primeira vez em julho de 2004, quando se dirigiu à convenção do Partido Democrata, o então candidato de Illinois ao Senado cativou os delegados com seu apelo não-ideológico à comunidade e sua crença cívica. Estas palavras pertencem ao discurso que fez na ocasião, e que se tornou famoso:
Não existe uma América liberal e uma América conservadora: existem os Estados Unidos da América. Não existe uma América branca e uma América negra, uma América latina e uma América asiática: existem os Estados Unidos da América… Nós cultuamos um Deus todo-poderoso nos Estados azuis [democratas], e não gostamos de agentes federais bisbilhotando nossas bibliotecas, nos Estados vermelhos [republicanos]. Nós organizamos campeonatos de basquete nos estados azuis e temos amigos gays nos estados vermelhos. Existem patriotas que se opõem à guerra no Iraque e patriotas que a apóiam. Nós somos um só povo, todos nós prezamos a as estrelas e as listras, todos nós defendemos os Estados Unidos da América.
Nos eventos de campanha – que chegaram a ser comparados, por observadores, a rituais religiosos – Obama relembra seus apoiadores, de forma consistente, que todos os norte-americanos, sem distinção de raça, classe, ou gênero podem prosperar. Seu próprio nome, ele diz, é um símbolo da possibilidade norte-americana de mobilidade e destaque social:
[Meus pais me deram] um nome africano, Barack, ou “abençoado”, acreditando que, em uma América livre, um nome não deve ser uma barreira para o sucesso. Eles me imaginaram freqüentando as melhores escolas do país, mesmo que não fossem ricos, porque em uma América generosa você não precisa ser rico para realizar seu potencial.
Como mostrou no caso do Iraque, ele não evita tomar posições. Mas seus apoiadores as minimizam muitas vezes, em favor da representação de conjunto que ele expressa
Obama promove sua candidatura enquanto um político pós-partidário e pós-racial, buscando construir uma totalidade inclusiva, um consenso para a “mudança”. Isto permite a seus eleitores definir o que Obama representa para eles mesmos, livres das reais posicões políticas que o candidato defende. Não é tanto que Obama tenha evitado tomar posições (ele as assumiu de forma clara, por exemplo, sobre a guerra do Iraque: [4] são seus apoiadores que as minimizam muitas vezes, em favor da representação do conjunto que ele expressa.
Nada expresa melhor a confluência entre forma e conteúdo, na mensagem de Obama, que seu slogan “Sim, podemos” Yes, we can. Ele incorpora temas universalistas de inclusão e tolerância, num estilo em que o orador faz o apelo e espera a resposta, remanescente da tradição participativa da igreja afro-americana (Ver, em “Yes, we can” um exemplo)
Não é de se supreender, no entanto, que as massas do Partido Democrata tenham se unido a este arauto na atual temporada de primárias. Obama reflete o que o partido veio afirmando durante toda a segunda metade do século passado. Ele é a apoteose do universalismo democrático.
Ao longo do curso da campanha, Obama foi atacado repetidas vezes – primeiro por Clinton e agora pelo senador John Mccain, provável candidato republicano. Ambos julgaram-no “meramente retórico” e “eloquente, mas vazio” querendo dizer sem substância, sem estofo. Alega-se que seu conhecimento de política é fraco e que ele não tem uma agenda clara.
A modernidade de Obama não tem nada a ver com a de Bill Clinton. Se escolhido por seu partido, Obama será o mais à esquerda entre os democratas desde George Mc Govern, em 1972
Embora esta linha de ataque expresse uma preocupação legítima, é também necessário apontar que a política é uma arte feita de palavras, o elemento mais forte e sonoro que evoca poesia no léxico político de hoje (“poeta” é outro epíteto, supostamente desqualificador, atirado contra Obama). As palavras e a capacidade de usá-las são habillidades da profissão, visto que a política é essencialmente uma arte retórica. As pessoas ouviam Ronald Reagan e gostavam do que ele dizia. O mesmo não poderia ser dito de H.W. Bush, nem de G.W. Bush.
Da mesma forma, o sinal que distingue Bill Clinton de de quase todos os outros recentes aspirantes a presidente democratas (incluindo sua esposa) é sua maestria na arte de comunicação. Sem isto, Obama (ou Hillary) não podem conseguir grande coisa. O senso comum (repetido incansavelmente na campanha de Hillary Clinton) de que se faz campanha em poesia e se governa em prosa omite que, nesta era de permanente campanha, é preciso dominar ambos os meios, todo o tempo. Não é por acidente que os líderes norte-americanos julgados como grandes são aqueles de cujas palavras podemos nos lembrar.
Assim como Obama hoje, Lincoln foi também acusado, por seus oponentes, de disfarçar sua verdadeira agenda por trás de uma névoa de palavras bem-ditas, mas substancialmente ambíguas. Durante sua campanha para presidente, em 1860, ele foi pressionado várias vezes a tomar partido claro em relação à abolição da escrevatura. Mas a bandeira sob a qual preferiu conduzir sua campanha foi a do nacionalismo. Lincoln autodenominava-se um salvador da União e não o protetor dos homens e mulheres negros. Ele declarou sua repugnância pela escravidão, mas sempre deixou claro que esta era uma opinião pessoal e não partidária, e teria poucos desdobramentos políticos, caso fosse eleito. Neste sentido, a performance de Lincoln poderia ser vista como um dos maiores estelionatos eleitorais na história da política… E, ainda assim, é um dos mandatos que os norte-americanos, brancos e negros, provavelmente defenderiam hoje. Sua estratégia era a única que poderia assegurar sua nomenação como candidato republicano, e — com um pouco de sorte… — a presidência.
Se Obama for escolhido entre os democratas para defender suas cores em novembro, o ponto mais sensível de seu discurso político não será a raça, mas o caráter supostamente progressista de sua candidatura. Seu histórico de votações (como parlamentar no Estado de Illinois e senador em Washington), assim como suas alianças políticas, indicam que ele está na ala esquerda do Partido Democrata, e bem mais à esquerda que a maioria dos candidatos recentes. Neste sentido, a modernidade de Obama não tem nada a ver com a de Bill Clinton, quando eleito em 1992. Se for o escolhido de seu partido, Obama poderá ser classificado pelos historiadores como o mais à esquerda entre os democratas desde George Mc Govern, em 1972. Optará por fazer campanha como um progressista de carteirinha? Ou preferirá aparecer como alguém acima das disputas políticas?
[1] Cidadãos que optaram por não se afiliar a nenhum dos dois grandes partidos, no momento de sua inscrição eleitoral. A questão sobre seu vínculo partidário lhes é apresentada para determinar de que primárias eles poderão participar. Porque, em muitos Estados, um eleitor inscrito como democrata, ou como republicano, não pode participar da primária de outro partido
[2] Para dados sobre grupos demográficos e participação eleitoral, ver The United States Election Project http://elections.gmu.edu
[3] Este esboço histórico inspira-se em John Gerring, Party Ideologies in America, 1828-1996. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
[4] Em 2/10/2002, no momento em que uma maioria dos norte-americanos parecia apoiar a política do presidente George W. Bush, Obama participou de uma manifestação anti-guerra e pronunciou um discurso importante.
John Gerring, Professor de ciência política na Universidade de Boston e autor de Party Ideologies in America: 1828-1996. Cambridge University Press, Nova York, 2001.
Joshua Yesnowitz, Doutorando na Universidade de Boston.
Seu discurso realça a luta por direitos para todos na era pós-industrial. Sua história de vida encarna a esperança de outra globalização possível. Suas posições estão bem à esquerda da média do Partido Democrata. Mas como ele enfrentará o desafio da disputa eleitoral, num país marcado pelo conservadorismo?
John Gerring e Joshua Yesnowitz
Além de uma campanha eleitoral clássica, a candidatura de Barack Obama é um movimento, como revelam as multidões eletrizadas que comparecem a seus encontros, as dezenas de voluntários que o apóiam e mais de um milhão de pequenos doadores. Este movimento agregou uma grande quantidade de novos eleitores ao processo de escolha do Partido Democrata, particularmente jovens e independentes [1]. Como resultado deste entusiasmo, o comparecimento às primárias e caucuses do Partido Democrata alcançou um recordes históricos. Aparentemente, Obama injetou nesta disputa um calor que esteve ausente por muitos anos [2].
E no entanto, há enormes diferenças de opinião sobre o significado da candidatura de Barack Obama. Para seus eleitores, ele é uma força fundamentalmente nova para a política norte-americana, já que vai além do partidarismo e convida a ultrapassar um jogo eleitoral viciado. Para seus oponentes no Partido Democrata (aqueles que apóiam a candidatura da senadora Hillary Clinton), ele é um espalhafatoso vulgar, combinando juventude e inexperiência. E para os partidários ao republicanismo, é um sujeito fascinante, mas que não tem nada de misterioso: um progressista ultrapassado, desejoso de redistribuir a renda por meio de impostos, pouco diferente daqueles que o precederam.
Cada uma destas perspectivas contém elementos de verdade. Porém, o que este homem traz de novo, seu ineditismo, e também sua história de vida, têm fornecido um amplo acervo para os diversos palpites. Tendo um pai do Quênia e uma mãe do Kansas, Obama foi criado no Havaí e na Indonésia, para onde sua mãe se mudou a fim de aprofundar suas pesquisas de doutorado em Antropologia (e onde acabou se casando de novo, o que deu a Obama um padrasto Indonésio). Ele freqüentou a faculdade na Califórnia (Occidental) e em Nova Yorque (Columbia), depois mudou-se para o Sul de Chicago, onde foi organizador de comunidades, até receber seu diploma de Direito em Massachussetts (Harvard). Não é de surpreender que Barack Hussein Obama tenha servido como um pergaminho de diversas camadas, sobre o qual o mundo projetou muitos dos grandes temas contemporâneos.
Barack Obama é um mensageiro, mas não um arquiteto do moderno Partido Democrata. Exotismos à parte, a candidatura de Obama está fincada nas questões que agora são tradicionais do Partido Democrata. Do fim do século 19 até a metade do século 20, as causas do partido eram definidas pela oposição à concentração de poder e dinheiro na sociedade norte-americana. Candidatos democratas à presidência – incluindo William Jennings Bryan (em 1896, 1900, 1908), Woodrow Wilson (1912, 1916), Franklin Roosevelt (1932, 1936, 1940 e 1944), e Harrry Truman (1948) – fizeram campanha pelo “povo” e contra os “interesses [privados]”. Eram marcados por uma visão plebiscitária do poder político, em que as pessoas comuns se juntavam para governar diretamente (ou o mais diretamente possível), e conchavos “privados” entre representantes do poder eram considerados corruptos, plutocráticos. Nos discursos, investiam contra o poder concentrado dos capitalistas, referindo-se a eles como trusts e Big Business. Contra os privilégios desfrutados pelas elites, os democratas lutavam pelos direitos do homem comum -– este, assumidamente branco e de origem européia. Assim foi era populista da ideologia do Partido Democrata [3].
Mutações no discurso do Partido Democrata. A luta por um “governo da maioria” e a denúncia do Big Business são substituídas pelos “direitos para todos” — inclusive as minorias
Na Era pós-II Guerra, a começar pelas campanhas de Adlai Stevenson (1952,1956), e depois com as de John Kennedy (1960), Lyndon Johnson (1964) e Hubert Humpphrey (1968), o discurso ácido da era populista diluiu-se. O antagonismo das classes sociais foi deslocado. Em seu lugar, entram os novos objetivos políticos e auto-imagem do partido. Os democratas do pós-guerra defendiam as reformas sociais da era progressista e do New Deal, e de vez em quando buscavam estender o alcance destas políticas (especialmente, as de seguridade social). No entanto, em seu discurso público, todas as conotações ligadas à luta de classes desapareciam. No lugar delas, os democratas adotaram a ideologia do universalismo, em que todas as raças, credos e classes pudessem estar envolvidas.
Essa estratégia retórica tinha como objetivo central o desejo de escapar dos possíveis perigos de um comunismo em ascensão (sobretudo, no auge da Guerra Fria), e da crescente impopularidade do movimento trabalhista. Os democratas do pós-guerra raramente faziam apelos ao governo para regular o setor privado; e nunca atacaram o setor do Big Business. Além disto, a adoção de uma ideologia universalista de união nacional não era somente uma ferramenta retórica, por meio da qual se evitavam acusações de práticas de socialismo e não-americanismo. Ela também articulava um novo objetivo político, fundamental para o Partido Democrata.
A partir de 1948, com a adoção do primeiro modelo de direitos civis, os democratas passaram a apoiar o engajamento ativo do governo na garantia de direitos para as mulheres e minorias. No princípio, o significado de minorias ficava restrito aos afro-americanos. Com o passar do tempo, o precedente dos direitos civis aos negros foi se estabelecendo, e o partido passou a defender, da mesma forma os direitos das mulheres, dos hispânicos, dos homossexuais e uma miríade de outros temas, menos etnicistas e mais baseados em causas. Assim, a filosofia dos direitos foi incessantemente estendida. De fato, o partido ao longo do curso do século vinte passou pelo processo de transformação, da ideologia do “governo da maioria” para a ideologia de “direitos das minorias”.
No entanto, o passo seguinte nesta caminhada para a unidade entre irmãos e irmãs acabou não acontecendo. O padrão dos candidatos do partido à presidência inclui apenas homens e brancos. Mulheres e minorias foram encorajadas a votar para os democratas, mas nunca contempladas com a indicação ao posto (ainda que alguns tenham tentado, como Geraldine Ferraro e Jesse Jackson). Agora, depois de pregar a fala da inclusão por meio século, o partido está sendo induzido a dançar conforme a música. Este ano, não importa qual dos dois candidatos for escolhido, tanto ele (Barack) quanto ela (Hillary) vão encarnar, em suas histórias de vida, a marca do Partido Democrata contemporâneo. O único postulante sério com pele branca e cromossomo Y – John Edwards – suspendeu sua campanha após ser davastado nas primárias, em que não ganhou sequer em um estado. É de notar que Edwards promovia uma campanha populista, focada em disparidades de classe e desigualdade de renda, uma estratégia falida para ganhar força.
Obama afirma-se enquanto o ápice da inclusão democrática. Sua vitoriosa história de vida e sua retórica retumbante captam o clima desta era pós-industrial
Dos dois candidatos-líderes, um colocou o tema universalista com maior força que o outro. Enquanto Hillary Clinton apresenta-se como mestre da política, protagonista dos cuidados com a saúde e co-presidente da administração Clinton, Barack Obama afirma-se enquanto o ápice da inclusão democrática. Não somente sua vitoriosa história de vida, como também sua retórica retumbante captam o clima do partido nesta era pós-industrial.
Apresentado a uma platéia nacional pela primeira vez em julho de 2004, quando se dirigiu à convenção do Partido Democrata, o então candidato de Illinois ao Senado cativou os delegados com seu apelo não-ideológico à comunidade e sua crença cívica. Estas palavras pertencem ao discurso que fez na ocasião, e que se tornou famoso:
Não existe uma América liberal e uma América conservadora: existem os Estados Unidos da América. Não existe uma América branca e uma América negra, uma América latina e uma América asiática: existem os Estados Unidos da América… Nós cultuamos um Deus todo-poderoso nos Estados azuis [democratas], e não gostamos de agentes federais bisbilhotando nossas bibliotecas, nos Estados vermelhos [republicanos]. Nós organizamos campeonatos de basquete nos estados azuis e temos amigos gays nos estados vermelhos. Existem patriotas que se opõem à guerra no Iraque e patriotas que a apóiam. Nós somos um só povo, todos nós prezamos a as estrelas e as listras, todos nós defendemos os Estados Unidos da América.
Nos eventos de campanha – que chegaram a ser comparados, por observadores, a rituais religiosos – Obama relembra seus apoiadores, de forma consistente, que todos os norte-americanos, sem distinção de raça, classe, ou gênero podem prosperar. Seu próprio nome, ele diz, é um símbolo da possibilidade norte-americana de mobilidade e destaque social:
[Meus pais me deram] um nome africano, Barack, ou “abençoado”, acreditando que, em uma América livre, um nome não deve ser uma barreira para o sucesso. Eles me imaginaram freqüentando as melhores escolas do país, mesmo que não fossem ricos, porque em uma América generosa você não precisa ser rico para realizar seu potencial.
Como mostrou no caso do Iraque, ele não evita tomar posições. Mas seus apoiadores as minimizam muitas vezes, em favor da representação de conjunto que ele expressa
Obama promove sua candidatura enquanto um político pós-partidário e pós-racial, buscando construir uma totalidade inclusiva, um consenso para a “mudança”. Isto permite a seus eleitores definir o que Obama representa para eles mesmos, livres das reais posicões políticas que o candidato defende. Não é tanto que Obama tenha evitado tomar posições (ele as assumiu de forma clara, por exemplo, sobre a guerra do Iraque: [4] são seus apoiadores que as minimizam muitas vezes, em favor da representação do conjunto que ele expressa.
Nada expresa melhor a confluência entre forma e conteúdo, na mensagem de Obama, que seu slogan “Sim, podemos” Yes, we can. Ele incorpora temas universalistas de inclusão e tolerância, num estilo em que o orador faz o apelo e espera a resposta, remanescente da tradição participativa da igreja afro-americana (Ver, em “Yes, we can” um exemplo)
Não é de se supreender, no entanto, que as massas do Partido Democrata tenham se unido a este arauto na atual temporada de primárias. Obama reflete o que o partido veio afirmando durante toda a segunda metade do século passado. Ele é a apoteose do universalismo democrático.
Ao longo do curso da campanha, Obama foi atacado repetidas vezes – primeiro por Clinton e agora pelo senador John Mccain, provável candidato republicano. Ambos julgaram-no “meramente retórico” e “eloquente, mas vazio” querendo dizer sem substância, sem estofo. Alega-se que seu conhecimento de política é fraco e que ele não tem uma agenda clara.
A modernidade de Obama não tem nada a ver com a de Bill Clinton. Se escolhido por seu partido, Obama será o mais à esquerda entre os democratas desde George Mc Govern, em 1972
Embora esta linha de ataque expresse uma preocupação legítima, é também necessário apontar que a política é uma arte feita de palavras, o elemento mais forte e sonoro que evoca poesia no léxico político de hoje (“poeta” é outro epíteto, supostamente desqualificador, atirado contra Obama). As palavras e a capacidade de usá-las são habillidades da profissão, visto que a política é essencialmente uma arte retórica. As pessoas ouviam Ronald Reagan e gostavam do que ele dizia. O mesmo não poderia ser dito de H.W. Bush, nem de G.W. Bush.
Da mesma forma, o sinal que distingue Bill Clinton de de quase todos os outros recentes aspirantes a presidente democratas (incluindo sua esposa) é sua maestria na arte de comunicação. Sem isto, Obama (ou Hillary) não podem conseguir grande coisa. O senso comum (repetido incansavelmente na campanha de Hillary Clinton) de que se faz campanha em poesia e se governa em prosa omite que, nesta era de permanente campanha, é preciso dominar ambos os meios, todo o tempo. Não é por acidente que os líderes norte-americanos julgados como grandes são aqueles de cujas palavras podemos nos lembrar.
Assim como Obama hoje, Lincoln foi também acusado, por seus oponentes, de disfarçar sua verdadeira agenda por trás de uma névoa de palavras bem-ditas, mas substancialmente ambíguas. Durante sua campanha para presidente, em 1860, ele foi pressionado várias vezes a tomar partido claro em relação à abolição da escrevatura. Mas a bandeira sob a qual preferiu conduzir sua campanha foi a do nacionalismo. Lincoln autodenominava-se um salvador da União e não o protetor dos homens e mulheres negros. Ele declarou sua repugnância pela escravidão, mas sempre deixou claro que esta era uma opinião pessoal e não partidária, e teria poucos desdobramentos políticos, caso fosse eleito. Neste sentido, a performance de Lincoln poderia ser vista como um dos maiores estelionatos eleitorais na história da política… E, ainda assim, é um dos mandatos que os norte-americanos, brancos e negros, provavelmente defenderiam hoje. Sua estratégia era a única que poderia assegurar sua nomenação como candidato republicano, e — com um pouco de sorte… — a presidência.
Se Obama for escolhido entre os democratas para defender suas cores em novembro, o ponto mais sensível de seu discurso político não será a raça, mas o caráter supostamente progressista de sua candidatura. Seu histórico de votações (como parlamentar no Estado de Illinois e senador em Washington), assim como suas alianças políticas, indicam que ele está na ala esquerda do Partido Democrata, e bem mais à esquerda que a maioria dos candidatos recentes. Neste sentido, a modernidade de Obama não tem nada a ver com a de Bill Clinton, quando eleito em 1992. Se for o escolhido de seu partido, Obama poderá ser classificado pelos historiadores como o mais à esquerda entre os democratas desde George Mc Govern, em 1972. Optará por fazer campanha como um progressista de carteirinha? Ou preferirá aparecer como alguém acima das disputas políticas?
[1] Cidadãos que optaram por não se afiliar a nenhum dos dois grandes partidos, no momento de sua inscrição eleitoral. A questão sobre seu vínculo partidário lhes é apresentada para determinar de que primárias eles poderão participar. Porque, em muitos Estados, um eleitor inscrito como democrata, ou como republicano, não pode participar da primária de outro partido
[2] Para dados sobre grupos demográficos e participação eleitoral, ver The United States Election Project http://elections.gmu.edu
[3] Este esboço histórico inspira-se em John Gerring, Party Ideologies in America, 1828-1996. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
[4] Em 2/10/2002, no momento em que uma maioria dos norte-americanos parecia apoiar a política do presidente George W. Bush, Obama participou de uma manifestação anti-guerra e pronunciou um discurso importante.
John Gerring, Professor de ciência política na Universidade de Boston e autor de Party Ideologies in America: 1828-1996. Cambridge University Press, Nova York, 2001.
Joshua Yesnowitz, Doutorando na Universidade de Boston.
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