Esgotamento do neoliberalismo na América Latina e novos processos constituintes
Esgotamento do neoliberalismo na América Latina e novos
processos constituintes
Esgotamento do neoliberalismo
Os clássicos liberais consideram que o Estado na sua conjunção de quatro
elementos: território, população, governo e o «legítimo uso da força». Para o
marxismo, o Estado burguês é o instrumento através do qual se garante a
exploração e se mantêm a dominação da burguesia sobre o conjunto da
sociedade, instrumentadas pela combinação variável de consenso e coerção,
aceitação e repressão. Os interesses particulares da classe dominante são
apresentados pelos seus representantes políticos como se fossem os
interesses do conjunto da sociedade, usando conceitos como popular,
nacional, cidadania, bem comum, respeito, legitimidade, legalidade, etc.
Como parte da sua estrutura orgânica, no momento da sua fundação o Estado
da burguesia instituiu, através de uma Assembleia ou Congresso Constituinte,
um conjunto de normas chamadas Constituição, em que se baseia o chamado
«Estado de direito». Este Estado liberal, surgido das revoluções burguesas,
estabelece um conjunto de ordenamentos fundamentais: direito de propriedade
individual, liberdade de comércio interno e externo, liberdade de trânsito, etc.;
ordenamentos orientados para garantir o funcionamento do mercado. A função
do Estado liberal («Estado polícia») é pois, favorecer a acumulação ampliada
do capital.
Perante o desafio do sistema socialista (que a URSS representou inicialmente)
e perante a gravidade crescente das crises críticas derivadas da sua própria
dinâmica, o capitalismo substituiu o Estado liberal «puro» pelo Estado de Bemestar
ou Estado keynesiano, como consequência da Grande Crise de 1919-
1933. O qual se estendeu desde os Estados Unidos e alguns países da Europa
a outras regiões do mundo. O Estado keynesiano caracterizou-se
fundamentalmente pela intervenção do Estado na economia capitalista com
vista a suavizar a sua instabilidade e tendência para as inevitáveis crises
periódicas. Para isso recorre-se a medidas como a redistribuição do
rendimento, o investimento público, a regulação monetária, a segurança e os
serviços sociais, e em geral, garantir condições favoráveis para o
desenvolvimento do sistema capitalista.
Na década dos anos setenta a funcionalidade do Estado keynesiano chegou ao
fim. Começa a inflação galopante, declara-se a «crise fiscal do Estado» e
sobrevêm a crise capitalista internacional de 1974-1975, que conjuga os
problemas de sobreacumulação do capital e estagflação (derrapagem com
inflação), pela primeira vez na história do capitalismo. O modelo keynesiano foi
substituído pelo monetarismo de Milton Friedman e pelo Estado neoliberal,
cujas «políticas de ajuste estrutural» postularam três eixos fundamentais: 1)
controle da inflação, 2) equilíbrio fiscal, e 3) estabilização dos tipos de Câmbio.
A estas medidas juntaram-se outras que acabaram por completar o que em
1990 se denominou «Consenso de Washington», entre elas: privatização de
activos públicos, liberalização comercial, desregulamento económico,
autonomia de bancos centrais, garantia da propriedade intelectual e,
destacadamente, o livre fluxo de capitais. E acrescentaríamos: cancelamento
de conquistas laborais e enfraquecimento das legislações na matéria. Nas
principais potências estabeleceram-se governos conservadores (Tatcher,
Reagan, etc.), e nos países dependentes iniciou-se o longo ciclo dos governos
neoliberais. Impôs-se o prolongado domínio, ainda não concluído, do que se
denominou «Modelo Neoliberal», mediante a poderosa pressão combinada da
dívida externa, os programas do FMI e do Banco Mundial, e a «diplomacia»
dos Estados Unidos, com a cumplicidade das oligarquias locais dos países
dependentes. Em 1988, Peter McNamara, presidente do Banco Mundial,
afirmou que o modelo tinha fracassado nos países desenvolvidos, mas
manteve-se ferreamente em todo o Terceiro Mundo e aplicou-se também à
URSS e Europa Oriental a quando da derrocada.
Devemos recordar que o modelo neoliberal se introduziu inicialmente sobre a
dor e o sangue do povo chileno pelo golpe de Estado cometido contra o
Presidente Salvador Allende em 1973 por Augusto Pinochet. Depois na década
de 1980 foi-se alargando até abarcar toda a região da América Latina e a
América Central e outros continentes.
A 3ª Revolução Científico-Tecnológica (informática, comunicações, etc.)
iniciada na década de 1970 favoreceu a configuração da GLOBALIZAÇÃO
NEOLIBERAL. O domínio esmagador das corporações internacionais e do
capital financeiro (sobretudo especulativo) alargou-se a todo o mundo:
— 3000 mil empresas internacionais, principalmente do G-7 (Estados Unidos,
Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Canadá e Itália), concentram quase
metade da produção mundial de bens e serviços.
— Em 1973 as transacções diárias do capital financeiro somavam 15 mil
milhões de dólares, em 1986 e alcançavam os 200 mil milhões, e no ano 2000
chegavam ao estratosférico número de 2 milhões de milhões de dólares.
Como afirmava Osvaldo Martinez: «O mercado financeiro global é a criatura
mais perfeita da globalização neoliberal», mas «é também a derrota do
crescimento económico, do emprego e da economia real que o sustentam». De
sócio menor, transformou-se em dono absoluto da economia mundial.
As exportações e os fluxos de capital financeiro constituíram-se nos principais
«motores» da economia mundial, mas o grosso do comércio já não se faz entre
países mas entre firmas, o que reduz notavelmente as contribuições tributárias;
e a mobilidade sem restrições do capital financeiro tem a faculdade de manter
ou derrubar economias nacionais inteiras da noite para o dia. Sobre todas
estas condições (e o poder militar) edificou-se e ainda se mantêm a hegemonia
dos Estados Unidos. Mas no transcurso das três décadas passadas foram-se
configurando os três grandes blocos em que está dividida a economia mundial
com as suas potências articuladoras: a União Europeia (Alemanha e França), o
leste asiático (Japão) e a América do Norte (Estados Unidos). Nestes anos e
no futuro próximo estão a emergir outras potências que mudarão o cenário:
China, Índia, Coreia do Sul e Brasil. Os Estados Unidos estão a caminho de
pagar os custos das suas ambições imperiais: crise económica, derrotas
diplomáticas e perda das suas posições privilegiadas na geopolítica mundial.
Os governos neoliberais e os seus «intelectuais orgânicos» venderam a ideia
de que a globalização é uma, e a inserção na mesma também é única. Falso.
Na realidade observam-se diferentes modalidades de inserção:
— a neoliberal heterodoxa: Estados Unidos, Reino Unido e outros.
— a «social-democracia» europeia: França, Alemanha, Itália, Espanha, etc.
— a do leste asiático: Coreia do Sul, Singapura, Taiwan, etc.
— o «socialismo de mercado» da China e do Vietname.
— a neoliberal mortal da América Latina e América Central.
A que se tem seguido na nossa região foi económica e socialmente desastrosa.
Em termos económicos representou a entrega dos nossos países às
companhias internacionais e ao capital financeiro internacional; e em termos
sociais, um retrocesso de quase três décadas. Entre os seus efeitos
específicos mais notórios temos:
— «libarización» do Estado-nação
— desnacionalização dos recursos estratégicos
— derrapagem económica
— encarecimento geral dos bens e serviços, principalmente os básicos
— encerramento de empresas
— redistribuição regressiva do rendimento
— agudização da desigualdade
— aumento massivo do desemprego
— aumento nas taxas de exploração sobre a força de trabalho
— precarização do trabalho
— diminuição do poder aquisitivo das classes trabalhadoras
— redução da cobertura assistencial pelo Estado
— eliminação dos direitos sociais
— aumento desmedido da pobreza
— marginalização regional
— anulação da função ou submissão dos sindicatos
O neoliberalismo já levou os Estados nacionais a destruir até as condições
limitadas de bem-estar conseguidas sob o Estado keynesiano, generalizando e
aprofundando as suas políticas económicas e sociais com o fim de atrair os
fluxos internacionais de capital financeiro. As políticas neoliberais
desarticularam a estrutura económica dos países menos avançados para tornar
inviável qualquer plano económico que não seja consistente com uma inserção
subordinada. Impediram realizar a tarefa pendente de gerar as condições que
permitam atender as necessidades da população e de reprodução do aparelho
produtivo, de tal forma que o processo de acumulação não dependa do
exterior.
O efeito geral de tudo isto reflecte-se na conversão dos sistemas capitalista
mundial numa espécie de «apartheid global»: um pequeno conjunto de países
com economias muito ricas e o resto do mundo submerso na derrapagem e no
atraso. Para complementar e reforçar esta situação, foi-se passando do
respeito formal à soberania nacional, ao descarado intervencionismo militar do
imperialismo dos Estados Unidos em qualquer parte do mundo.
E no plano político, o neoliberalismo está a gerar a crise das principais
instituições do próprio estado capitalista, ao serem submetidas aos poderes do
capital financeiro (principalmente especulativo) nacional e internacional, das
empresas internacionais e dos consórcios que monopolizam os meios de
comunicação. Desde logo, o neoliberalismo recrudesceu e pôs em evidência a
anulação de facto da representação das maiorias cidadãs. A cidadania vota, o
capital manda. A partir de uma perspectiva mais geral, tudo isto pode ser
entendido como um processo brutal de perda de identidade (e mesmo da
possibilidade de existir) dos indivíduos e da pertença aos colectivos nacionais,
que seria outra maneira de expressar a perda da Pátria, da Nação.
Este foi o processo hegemónico no mundo ao longo das últimas três décadas.
No entanto, desde finais da década de 1990 começaram a ser evidentes os
sinais do seu esgotamento, por ter agravado os problemas que supostamente
se destinava a resolver: instabilidade e derrapagem económica, concentração
do rendimento e desigualdade, pobreza e falta de oportunidades das maiorias
sociais, autoritarismo e exclusão, entre outros. Isto vem sendo expresso no
protesto dos povos e na sua procura de caminhos alternativos.
Viragem para esquerda na América Latina
A região da América Latina e América Central está a passar por um período
histórico novo da luta de classes. A viragem para a esquerda que o mundo
começou a experimentar a partir de finais da década de 1990, como
consequência do fracasso e esgotamento do neoliberalismo, cobrou força na
América Latina e América Central. As crises económicas em vários países
(México, Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Uruguai, Paraguai, etc.), ocorridas
nos anos noventa, são disso claras expressões. Os sucessivos triunfos das
esquerdas e centro-esquerdas na região são expressões da viragem para
outras alternativas para o desenvolvimento dos povos. Constituem a primeira
resposta popular regionalizada com projectos alternativos ao neoliberalismo.
As organizações de massas, os movimentos sociais e os partidos que
confluíram nestes processos constituíram plataformas programáticas diversas,
cujos principais eixos foram: a luta anti-imperialista; a recusa do neoliberalismo
com as suas privatizações, desregulações, tratados de comércio livre,
encerramento de empresas, desemprego, deterioração salarial e de nível de
vida, aumento da pobreza, inflação ou desavaliação; contra as fraudes
eleitorais; e contra a potenciação do narcotráfico, a violência e o
desgarramento do tecido social.
O descontentamento social que inaugurou as lutas sociais expressou-se de
formas diferentes nos vários países, entre os quais se destacam: protestos de
rua, rebeliões massivas e generalizadas, e a participação inabitual nos
processos eleitorais, que em vários casos culminaram com o triunfo e o acesso
ao poder presidencial, sob as próprias regras do Estado neoliberal.
Entre as reivindicações fundamentais inscritas nestes processos de luta de
massas pelo poder do Estado, destacam-se: recuperação da soberania
nacional; anulação das privatizações; nacionalização dos recursos naturais e
dos sectores económicos estratégicos; recuperação do Estado da sua função
redistributiva do rendimento; reforma agrária ou, no seu caso, melhoramento da
regulação da matéria; extensão e melhoramento dos serviços públicos para o
desenvolvimento social; democratização real da vida política pela via de
desenvolver a democracia participativa; e reconhecimento dos direitos dos
povos indígenas.
Estas reivindicações, articuladas de maneira específica em cada país,
representam o conteúdo de sistemas complexos de alianças em que
participaram camponeses, operários, indígenas, professores, intelectuais,
burocratas, estudantes, sectores populares, importantes segmentos das
classes médias e até empresários nacionalistas.
Estamos assim a transitar, por um intenso, complexo e árduo processo que
está a modificar o mapa político actual da América Latina, a partir do acesso ao
poder do Estado pela via das urnas, de alianças ou frentes sociopolíticas
populares de esquerda ou centro-esquerda. Este processo, excepção na
década passada, apresenta-se como regra na década actual. A América Latina
desloca-se para a esquerda e governa maioritariamente no sub-continente.
Permitimo-nos agora apresentar alguns elementos para a reflexão dos
processos da Venezuela, Bolívia, Equador, Brasil e Nicarágua.
Venezuela
O processo nacional constituinte da República Bolivariana da Venezuela
reveste-se de particular importância pelas suas características e pela sua
orientação para o que o Presidente Hugo Chavez denomina «o socialismo do
século XXI».
A derrota da ditadura de Marcos Pérez Jiménez em 1958 representou o início
de uma nova etapa no sistema político venezuelano, caracterizado pelo
restabelecimento da democracia representativa sob a condução dos partidos
políticos assinantes do «Pacto de Punto Fijo» e a elaboração de uma
Constituição aprovada em 1961. Os mesmos actores políticos alternavam-se
no poder político durante a denominada «Quarta República». No decorrer de
vários lustros a classe política foi-se corrompendo de modo cada vez mais
aberto, marginalizando e submergindo grande parte da população na pobreza.
A adopção total das políticas neoliberais em finais dos anos oitenta agravou a
situação económica e social do país, desembocando no famoso «caracazo»
(1989)
Neste marco de corrupção, derrapagem e crise económica, instabilidade
políticas e intensos protestos populares, Hugo Chavez apareceu no cenário
político com o golpe militar que liderou em Fevereiro de 1992. Embora não
conseguisse os seus objectivos, foi o ponto de partida do processo da
Revolução Bolivariana e que lhe permitiu tornar-se mais tarde na esperança
para os sectores populares maioritários e outros grupos sociais, de um
processo de mudanças na Venezuela. Depois de ter cumprido a sua
condenação e de fazer uma viragem para a via eleitoral, Chavez promoveu a
articulação de partidos de esquerda e centro-esquerda no chamado «Polo
Patriótico»: Partido Comunista da Venezuela (PCV), Pátria para Todos (PPT),
Movimento Bolivariano Revolucionário (MBR-200), Movimento V República
(MVR) e o Movimento para o Socialismo (MAS).
Ganhou a eleição presidencial de 6 de Dezembro de 1998 com 56% dos votos
e uma abstenção de 36,5%. Hugo Chavez chegou ao poder pela via eleitoral,
aceitando as regras da democracia representativa. Desde esse momento
iniciou o seu principal compromisso de campanha: refundar a República
mediante uma Assembleia Nacional Constituinte. O triunfo eleitoral de Chávez
é o triunfo de sectores excluídos desde 1958 da política e dos benefícios do
rendimento petrolífero, e dos danos do modelo neoliberal desde os anos
oitenta,
Dois meses depois de ocupar o cargo, o Presidente Chávez emitiu um Decreto
convocando um referendo consultivo para que o povo manifestasse a sua
aceitação ou recusa de uma Assembleia Nacional Constituinte para reformar o
país e criar a V República mediante a democracia social e participativa. Os
partidos tradicionais impugnaram a medida perante o Supremo Tribunal de
Justiça, mas foi negada, porque o Presidente da República tinha essa
faculdade. Aliás, segundo um inquérito sério, a convocatória para um referendo
consultivo gozava de 70% de apoio da população. O referendo consultivo
realizou-se a 25 de Abril de 1999.
A popularidade e o carisma do Presidente Chávez (84% de aceitação) foram
determinantes para o êxito do SIM. A oposição fez campanha pelo NÃO
através da organização «Venezuela Civil» e dos partidos políticos tradicionais.
O resultado foi arrasador. O SIM obteve 90% de apoio, com uma participação
de 40%. Assim, a proposta do Presidente Chávez foi aprovada de forma
democrática e participativa como nunca acontecera na história da Venezuela.
A eleição dos membros que integrariam a Assembleia Nacional Constituinte foi
fixada para 25 de Julho de 1999. A disputa democrática concentrou-se em
obter o maior número de membros da Constituinte. Um total de 1 167 cidadãos
disputou 128 lugares da Constituinte. Novamente a figura do presidente
Chávez foi determinante no resultado deste processo. Esta campanha foi
bastante ampla e participativa devido aos cidadãos independentes, professores
universitários, dirigentes operários, etc., etc. Tiveram que recolher assinaturas
para se inscreverem como candidatos à Constituinte. Houve, pois, um enorme
debate nacional sobre o rumo que o país deveria tomar.
Os resultados da eleição à Constituinte favoreceram o projecto do presidente
Chávez e o Polo Patriótico que obteve mais de 100 dos 128 lugares. A
Assembleia Nacional Constituinte instalou-se a 15 de Agosto de 1999, com a
missão de elaborar uma Nova Legislação Jurídica Nacional que sustentasse
um novo projecto de nação com bem-estar económico e social, um sistema
político de democracia participativa. Concluída esta histórica tarefa, a
Assembleia Nacional Constituinte fez um referendo vinculativo a 15 de
Dezembro de 1999, para aprovação ou recusa do projecto da nova
Constituição. O resultado foi de 71,2% pela aprovação, com uma abstenção de
53%. Pela primeira vez na história da Venezuela, foi submetida à aprovação do
povo uma Constituição Nacional.
O processo constituinte da República Bolivariana da Venezuela abriu o
caminho para o desenvolvimento do projecto do socialismo do século XXI.
Criou bases sociopolíticas fortes para superar os desafios do golpe de Estado
da oligarquia venezuelana conluiada com o imperialismo norte-americano de
Abril de 2002, e da paragem petrolífera em PDVSA em finais do mesmo ano,
com um prejuízo de vários milhares de milhões de dólares para o Estado e
para o desenvolvimento do país. Mas também estabeleceu o marco jurídicopolítico
para que o mesmo mecanismo da democracia participativa permitisse
ao povo venezuelano, mediante uma pequena maioria, dizer Não ao presidente
Chávez no seu projecto de reeleição indefinida e de incorporar ao texto jurídico
o propósito de construir o socialismo do século XXI.
Nesta situação encontra-se hoje o processo da Revolução Bolivarina da
Venezuela para que o processo Constituinte contribuiu de forma fundamental:
avançando no seu projecto de reforma do país com uma orientação socialista,
mas pressionada a partir de dentro pela oposição oligárquica de significativos
sectores médios, e de fora pelo imperialismo norte-americano e pelos seus
governos aliados na região.
Bolívia
Em 1985 implantou-se na Bolívia o modelo neoliberal. Desde então e até à
subida de Evo Morales à presidência da República, o país manteve-se na
derrapagem e atraso económico e social, na condição de saque dos seus
recursos por parte da aliança entre o imperialismo norte-americano, as
empresas internacionais e a oligarquia local, e esmagado por governos
autoritários sob o disfarce do restabelecimento da democracia formal.
Sob o governo de Evo Morales as coisas mudaram. De uma situação de défice
fiscal crónico passou-se ao superavit. As reservas monetárias internacionais
duplicaram. A dívida externa diminuiu substancialmente. Aumentou a níveis
sem precedentes o comércio internacional. Recuperou-se a propriedade sobre
os hidrocarbonetos, foram obtidos melhores preços para o gás e a fazenda
pública recebeu maiores impostos por estes recursos. Paralelamente adoptouse
a austeridade como princípio firme nas despesas públicas. E adoptaram-se
mecanismos de transparência na operação governamental.
Tudo isso contribuiu para o melhoramento das condições de vida e de trabalho
das classes e sectores populares maioritários. Mas também contribuiu para o
restabelecimento e recuperação do modo de vida das classes médias que
durante vários lustros saíam do país pela anulação de opções de vida. Não
obstante, estes sectores médios resistem a aceitar as mudanças favoráveis
que o país sofre, alinham-se com os grupos oligárquicos que mediante a
ameaça de separatismo e a mobilização violenta procuram obstruir o processo
da Revolução Boliviana, que entrou na sua etapa constituinte, e derrubar Evo
Morales.
Um certo número de governos departamentais (6 de 9) procurou criar uma
frente de resistência contra o governo de Evo Morales e o processo
constituinte. O seu objectivo principal é fazer gorar o processo no seu conjunto,
mas querem de conseguir pelo menos uma influência importante na
determinação das políticas económica, energética, territorial e social. E não
duvidariam em provocar a ruptura territorial do país em exclusivo benefício da
oligarquia e dos interesses do imperialismo e das corporações internacionais. A
fim de restabelecer os seus privilégios e lucros adicionais de que gozaram sob
os governos neoliberais, opõem-se radicalmente a qualquer medida de
fiscalização e coordenação do governo nacional. No entanto estes interesses
oligárquicos viram-se limitados pelos sectores sociais maioritários dos seus
departamentos, exigindo inclusivamente a renúncia dos governantes aos seus
cargos.
Entre os principais objectivos de ataque da oligarquia estão: impedir a
reconstrução da empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos;
desarticular a exploração mineira e impedir a sua recuperação pelo Estado
como proprietário do subsolo, despedindo pessoal e recontratando com
salários miseráveis e sem segurança social; e manter o novo governo
enredado nestes conflitos para impedir que realize i programa de mudanças
que propôs, entre os quais: uma redistribuição importante da riqueza, a
geração de empregos, o abastecimento alimentar, a construção de casas, a
extensão dos serviços básicos e a redução da migração, tudo isso a favor das
classes trabalhadoras e dos sectores populares maioritários.
Nesta situação encontra-se a fase constituinte da Revolução Bolivíana, com
uma correlação de forças favorável mas ainda insuficientemente consolidada e
com grande desafios económicos e sociais que se não forem atendidos podem
corroer as bases sociopolíticas da reconstituição da república, da recuperação
da nação para todos os bolivianos e da conformação das bases para
desenvolver um projecto nacional de esquerdas.
Equador
O presidente do Equador Rafael Correa, afirmou que uma ideia de há mais de
meio século, «voltar a ter pátria», foi a inspiração de um conjunto de
equatorianos que decidiram libertar-se dos grupos que mantiveram a nação
sequestrada, e iniciar uma mudança radical do sistema económico, político e
social vigentes. Nestes termos está instalado o processo constituinte que o
país vive. A esses extremos de «recuperar a Pátria» levou o povo equatoriano
o neoliberalismo e a aliança do imperialismo com a oligarquia local. Essa
esperança, que se espalhou por todos os rincões do país, permitiu o triunfo
eleitoral à Aliança País a 26 de Novembro de 2006.
Começou uma nova história. Os eixos fundamentais da mudança radical são:
— a revolução constitucional. Mediante a Assembleia Nacional Constituinte
apoiada pela maioria do povo, dotar o Equador de uma nova Constituição que
o prepare para o século XXI e contribua para superar o neoliberalismo.
— a luta contra a corrupção. Cancro disseminado por todo o corpo da nação
que o neoliberalismo agudizou e que se expressou na decomposição social, a
violência, a desigualdade e a pobreza generalizadas. Para isso procura-se
colocar os melhores homens e mulheres à frente das instituições do Estado,
melhorar a informação do sector público, endurecer as leis anti-corrupção para
funcionários e sector privado, organizar controles de cidadãos, reformar todas
as leis que geram e protegem privilégios de todo o tipo, assim como as leis que
propiciam o endividamento ilimitado do país e o saque dos seus recursos, e
não deixar impunes os delitos do passado nessa matéria.
— a revolução económica. Acabar com o Consenso de Washington. A
aplicação das políticas neoliberais, esse «populismo do capital», foi um rotundo
fracasso e as suas consequências foram desastrosas. O Equador só cresceu
em termos per capita a partir de finais dos anos oitenta, proliferou a
privatização de dinheiros públicos, perdeu-se a moeda nacional com a
dolarização, a desigualdade aumentou, o desemprego duplicou, aumentou a
emigração massiva, perdeu-se soberania e caiu-se na ingovernabilidade por
um período muito prolongado. Nestas condições exige-se que o Estado, a
planificação e a acção colectiva recuperem o seu papel essencial para o
progresso. Priorizar uma política soberana que coloque o desenvolvimento do
ser humano por cima do capital, com especial atenção para os mais pobres.
Adoptar uma nova política de endividamento externo que o autorize quando
seja estritamente indispensável e se utilize para investimentos produtivos.
Acompanhar isto com a promoção de uma acção concertada dos países
devedores para uma reforma à arquitectura financeira internacional, redefinir a
sustentabilidade do serviço da dívida, determinar a dívida legítima e
estabelecer um Tribunal Internacional de Arbitragem de Dívida Soberana. E
adicionar a isso a integração financeira regional com a criação do Banco do
Sul, o qual implicaria desprezar essa cessão de soberania que representa a
autonomia do banco central.
Desprezar esses disfarces da sobre-exploração laboral como são a
«flexibilização», «terciarização» e «precaridade». Nesse sentido, quer-se
construir uma legislação laboral regional que recupere a dignidade do trabalho
humano. E estabelecer como principal árbitro das relações económicas
internacionais a cooperação, complementaridade e coordenação do
desenvolvimento mútuo.
— a revolução na educação e saúde. O Equador tem sido um dos 5 países
da região com menor investimento social per capita, pelo que chegou a
representar apenas 25% do promédio regional. Num processo de mudança
radical é imperativo reverter tal situação. O investimento no ser humano
constitui a melhor política para um crescimento a longo prazo com equidade.
Para isso é necessário libertar recursos de outras áreas, especialmente da
dívida externa. A política social deve ser parte fundamental da política
económica.
Neste eixo de mudança radical está o tema de migração, os exilados pela
pobreza. Talvez a maior expressão do fracasso do modelo neoliberal é a
destruição brutal do emprego e a consequente migração de milhões de
equatorianos em busca de uma vida digna. Absurdamente, são estes migrantes
que em boa medida têm sustentado a economia nacional com as suas
remessas, enquanto a oligarquia remete os seus lucros para o exterior. Este
país é mantido pelos seus pobres. Perante isso o processo constituinte e a
Assembleia Legislativa vão incluir três representantes permanentes dos
migrantes; e vai instituir-se a Secretaria Nacional do Migrante com estatuto de
Ministério.
Quanto aos sectores mais vulneráveis da sociedade, a república constituída e o
seu governo vão assumir a fundo a luta contra a discriminação em todas as
suas formas: económica, de género e étnica. E para dar atenção especial às
crianças de rua, a exploração do trabalho infantil, as mães solteiras, os
incapacitados e doentes terminais, foi resolvido criar a Secretaria da
Solidariedade Cidadã.
— resgate da dignidade, soberania e construção da integração latinoamericana.
Neste último eixo de mudança decidiu-se que o processo
constituinte e a nova etapa na história do país vão permitir ao Equador
recuperar a sua dignidade como nação independente e soberana, e
empreender um processo de construção da grande nação sul-americana e a da
«Pátria Grande» por que lutaram San Martín, Bolivar e muitos outros próceres.
Trata-se de construir horizontes de irmandade e fraternidade entre os povos
soberanos da América do Sul e de toda a região latino-americana e de centro.
Numa resumida síntese, é este o processo constituinte que o Equador
atravessa sob a presidência de Rafael Correa, no marco de uma deslocação na
correlação de forças desde o ano de 2002 até à data a favor das classes
trabalhadoras, os povos indígenas e os sectores populares maioritários do
país.
Brasil
Em 1985 o primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura militar, José
Sarney, com o fim de erradicar ou pelo menos controlar a inflação e a dívida
externa impôs um programa de austeridade. Nesta década os trabalhadores
formaram a Central Única de Trabalhadores (CUT) independente e um partido
político classista, o Partido dos Trabalhadores (PT). Em Outubro de 1988
entrou em vigor uma nova constituição, que permitiria fortalecer a democracia.
Em Dezembro de 1989 Luís Inácio Lula da Silva e o PT estiveram a 2% de
ganhar a presidência, mas foi eleito Fernando Collor de Mello, candidato do
Partido Conservador de Reconstrução Nacional, As suas medidas drásticas de
luta contra a inflação provocaram uma das mais graves recessões que o Brasil
conheceu numa década. A Câmara de Deputados lançou um processo contra
Collor por corrupção e este renunciou a 28 de Dezembro de 1992. Itamar
Franco foi então investido oficialmente como presidente do Brasil. Em
princípios dos anos noventa o modelo económico baseado em capitais estatais
e multinacionais estava em crise: a hiperinflação era de 1000%, os pagamentos
da dívida cresciam e prevalecia uma derrapagem relativa da economia.
Fernando Henrique Cardozo assumiu a presidência a 1 de Janeiro de 1995,
iniciando um intenso programa neoliberal: a inflação foi parcialmente parada,
acelerou as privatizações, aumentou os intercâmbios com os países aderentes
ao MERCOSUR, o país avançou economicamente, mas subsistiram e até
aumentaram os níveis de pobreza. As políticas neoliberais foram cada vez mais
questionadas pelos movimentos sociais e a esquerda, destacadamente o MST
e o PT.
Em Outubro de 1998 Cardoso foi reeleito com cerca de 54% dos sufrágios,
contra 22% de Lula, Cardoso prosseguiu o seu programa neoliberal de acordo
com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o que provocou o surgimento de
uma crise financeira profunda e que chegou quase ao colapso em 2002; a
dívida externa chegou a cerca de 250 mil milhões de dólares com pagamentos
de 30 mil milhões de juro, 20 mil milhões em fuga de capitais, a queda do
Produto Interno Bruto, reponta da inflação, desavaliação, aumento do
desemprego e a deterioração profunda e generalizada dos níveis de vida da
maioria da população. Esta crise sacudiu a economia brasileira e
desestabilizou a dos seus vizinhos do MERCOSUR, principalmente a da
Argentina. O FMI e os países ricos concordaram entregar 41 mil milhões de
dólares ao Brasil, com medo que se desencadeasse uma crise financeira
mundial.
Depois dos bons resultados para o PT nas eleições municipais de 2000, na sua
quarta tentativa Lula ganhou a presidência do Brasil a 27 de Outubro de 2002
com uma votação histórica, depois de doze anos de regimes neoliberais que
levaram a uma profunda crise a oitava economia mais importante do mundo e
aumentaram extraordinariamente a pobreza.
No meio de enormes pressões pela oligarquia local, o capital financeiro
internacional, as internacionais e o governo dos Estados Unidos, as
preferências do povo por Lula mostraram um elevado nível de consciência
política e de deslinde das políticas implementadas pelo governos de Collor de
Mello e Cardoso. Essas pressões concentraram-se por razões específicas:
liquidar a coluna vertebral do MERCOSUR e a convicção crescente
nacionalista de importantes fracções do capital brasileiro, que impediram a
ALCA e ameaçavam destruí-la, o que finalmente aconteceu com o triunfo de
Lula e do PT.
Foi a confirmação por via eleitoral, da recusa clara dos povos da América
Latina e da América Central do neoliberalismo, e das políticas do chamado
Consenso de Washington (1991). O seu significado político ultrapassou o Brasil
e repercutiu na correlação de forças da região. Elevou as expectativas, a moral
e a disposição de luta dos povos latino-americanos.
Esperava-se que Lula e a frente sociopolítica articulada pelo PT contribuíssem
para a cumulação de forças na luta contra o imperialismo e as suas políticas
neoliberais, na base de manter a mobilização do povo brasileiro e a promoção
da unidade latino-americana. O que estava em jogo no Brasil não era uma
revolução anti-capitalista, mas sim um governo que criava condições para
avançar nessa direcção. Só parcialmente os factos se aproximaram dessas
expectativas.
Perante a evidente quebra que as políticas neoliberais tinham provocado no
sector empresarial, devido à distribuição desigual dos benefícios da
globalização entre as diferentes fracções do capital, Lula procurou inclinar
ainda mais a seu favor a correlação de forças. E promoveu a aliança com
representantes dos empresários mais proeminentes não só para ganhar mas
também para governar. Juntou a isso que a política económica do novo
governo não era nada clara, e que a burguesia brasileira estava muito
consciente das implicações em optar por uma política de submissão ao capital
internacional. A pergunta crucial a que Lula tinha de responder era esta: é
preciso o neoliberalismo para pactuar com fracções do empresariado?
Aparentemente, nesses anos a resposta de Lula foi que não, considerando que
várias fracções do empresariado nacional em países como o Brasil se viram
obrigadas a confrontar o neoliberalismo como uma forma de sobrevivência,
possibilitando alianças para governar com base em programas que apontam à
recuperação do dinamismo interno da economia como uma forma de romper as
cadeias impostas pela globalização neoliberal. No entanto, pode ter
considerado também que o capital não é capaz de aceitar que essas alianças
se orientassem na direcção de uma lógica democrática e popular, porque no
momento em que conseguissem colocação nos mercados globais perderiam
todo o incentivo para impulsionar programas nacionais de governo.
Em todo o caso, as medidas e o desempenho do governo Lula confirmaram o
seu reposicionamento a respeito do projecto anti-neoliberal originário com o
que conseguiu a presidência: o cumprimento dos acordos com o FMI (o juro da
dívida externa representa 3.5 vezes a soma destinada à educação, a saúde e a
reforma agrária), o gabinete inicial e as suas mudanças, a política económica
mais permeada pelo Consenso de Washington (por exemplo, a economia
encontra-se totalmente aberta aos grandes movimentos de capitais, e o
governo não conta com instrumentos de defesa em casos de ataques
especulativos), a reforma do sistema de pensões, a atenção insuficiente aos
programas da Reforma Agrária e «Fome Zero», o distanciamento do MST, os
problemas do PT, entre outros assuntos fundamentais. As políticas sociais
impulsionadas por Lula são importantes para dar resposta à população mais
pobre, mas são insuficientes para resolver a profunda desigualdade existente
no país. De facto, não se aprecia a instrumentalização de reformas estruturais
anti-neoliberais de importância, e pelo contrário tem-se visto interesse em
baixar o perfil de políticas que pudessem gerar tensões com poderes actuantes
internacionais. O que não deixa de mostrar a modificação da aliança de classes
em que o governo se tem apoiado.
Para retomar o projecto original de Lula e o PT e cobrir os compromissos
populares, são necessárias mudanças estruturais anti-neoliberais na economia
e na política. A continuação do modelo neoliberal impede o crescimento da
economia e um verdadeiro desenvolvimento nacional. Com o actual projecto
beneficiam-se primordialmente o sistema financeiro e bancário, e as empresas
multinacionais que aproveitam os recursos naturais e a mão-de-obra
embaratecer para aumentar as suas exportações. É quase impossível, no
marco deste modelo, investir nas prioridades do país e nas necessidades da
população. Seria necessário, pelo menos, retomar a rota proposta em 2002:
um projecto de desenvolvimento nacional que tenha como eixos o crescimento
permanente, o desenvolvimento local e o combate à desigualdade social.
O que aconteceu com o que se denominava «governo da esperança latinoamericana
» é muito sintomático e deveria chamar-nos a reflectir quando se
trata de alianças de classes para governar. Nalguns casos foi privilegiado o
aproximar do centro, adaptando o discurso e os programas ao âmbito da
social-democracia, quando provavelmente o recomendável seria definir um
programa que abarcasse o que fazer no caso de ganhar o governo, e a partir
daí levar a cabo uma estratégia de alianças ampla e necessária para avançar
na direcção acima enunciada.
A luta é complicada porque os Estados Unidos são uma super potência militar
que decidiu apropriar-se do mundo e lança mão de mecanismos que vão da
cooptação à chantagem de regimes democráticos, ou agressão aberta, como
as que se centralizaram sobre o governo constitucional do presidente Hugo
Chávez na Venezuela. Dadas essas circunstâncias, torna-se possível e
eventualmente necessário estabelecer alianças com sectores empresariais. No
entanto, a sua disposição de confrontar o imperialismo termina quando
conseguem a sua participação nos mercados. Ainda assim, atrair estes
sectores a um programa de governo alternativo ao neoliberalismo permite
acumular forças e defender a soberania nacional. Por essa razão a esquerda
deveria incorporar essa dimensão no seu trabalho, mas não substituir as suas
responsabilidades históricas pela gestão do Estado burguês, porque acabará
por trair os seus princípios. As lições do Brasil são essenciais para as
definições estratégicas, nas nossas lutas pela soberania e o bem-estar dos
nossos povos.
Nicarágua
O FSLN chegou ao poder pela via revolucionária em 1979 derrubando a
ditadura somozista. Como consequência do bloqueio do imperialismo norteamericano
que devastou a economia do país, do financiamento feito pela
contra-revolução e de uma guerra que durou dez anos e custou 50 mil mortos,
Daniel Ortega e o sandinismo perderam o poder nas eleições de 1990. Agora
recuperaram-no novamente pela via eleitoral.
Daniel Ortega Saavedra ganhou a presidência a 5 de Novembro de 2006 com
38% de votos, contra 30% de Montealegre (Aliança Liberal) e 26% de Rizo
(Partido Liberal Constitucionalista), os candidatos mais importantes da direita
nicaraguense. Foram as eleições presidenciais e legislativas mais observadas
desde os comícios de 1990. O Presidente do Conselho Supremo Eleitoral
informou que se inscreveram mais de 17 000 observadores, dos quais 1 000
eram estrangeiros, além dos 422 jornalistas também estrangeiros.
O marco jurídico em que se deu este resultado veio da reforma constitucional
da Lei Eleitoral que os sandinistas assinaram com o PLC em 2002 e 2004.
Todo se fez de acordo com a lei, respeitando escrupulosamente a sua letra.
Aproveitou-se o marco legal capitalista para avançar posições num processo
prolongado, que vinha de alguns anos atrás, de construção do poder popular.
O qual mostra, ao contrário de outros processos recentes, que os acordos e
alianças tácticas com a direita não têm que significar a deposição de princípios
nem colocar de lado o objectivo estratégico.
Desde logo, os sectores conservadores e da pequena burguesia com os seus
representantes políticos e intelectuais, iniciaram uma grande campanha para
denunciar como «assalto à democracia» o pacto assinado. Argumentaram que
conforme à Lei Eleitoral, as juntas eleitorais ou mesas receptoras de votos
ficavam todas sob o controle do FSLN e do Partido Liberal; que a autoridade
eleitoral, de cima a baixo, não era independente mas sim partidária. É um facto
ultra-comprovado que se a lei e a autoridade eleitoral estivessem debaixo do
seu controle, guardariam silêncio e nada lhes parecia suspeito de
antidemocrático. Assim é a luta pelo poder.
O panorama da contenda era muito complexo pelas características e o
resultado da eleição presidencial anterior, em que na recta final a oligarquia, o
governo norte-americano e a hierarquia católica «atiraram a carne toda para o
assador» e surgiram com o triunfo perante o assombro e a sensação de
impotência do FSLN. Mas também complexo pelos riscos distintivos dos
próprios opositores: Daniel Ortega e Jaime Morales Carazo pelo FSLN; os
reformistas-sandinistas do MRS liderados por Edmundo Jarquin e Carlos Mejía
Godoy; o Partido Liberal Nicaraguense-Partido Conservador (ALN-PC) com
Eduardo Montealegre e Fabricio Cajina; e Edén Pastora e Mercedes Tenório.
Neste contexto, fiel à sua eficaz estratégia do medo, a aliança entre a direita
política, a oligarquia e os representantes do imperialismo norte-americano,
apresentaram a eleição como um dramático dilema nacional, afirmavam: «nas
eleições de 5 de Novembro a Nicarágua tem duas opções;: alistar-se na
aliança da ultra-esquerda «afugenta o capital» liderada por Hugo Chávez e o
moribundo Fidel Castro, ou caminhar para um futuro mais democrático, de
progresso económico e social dentro do marco económico e jurídico do Tratado
de Livre Comércio entre a República Dominicana, a América Central e os
Estados Unidos (TLC)». Seguindo a estratégia mediática do medo que
funcionou no México ao difundir massivamente «López Obrador é um perigo
para o México», também lançaram um intenso bombardeio mediático afirmando
que Daniel Ortega era «um perigo para a Nicarágua». Mas a experiência é a
fonte da sabedoria, e então esta estratégia foi eficazmente combatida por
Daniel Ortega e o FSLN.
A eleição em 2001 foi injusta pela utilização desproporcionada dos recursos e
os apoios indevidos do governo de Alemán a favor do candidato oficial, Enrique
Bolaños. Os comícios de 2006 foram também injustos pela intervenção na
altura de Bolaños a favor do candidato oficial, Eduardo Montealegre, e o apoio
aberto do imperialismo norte-americano. Por esta razão, mais agora do que no
passado, a eleição apareceu diante de todos como a confrontação entre uma
oligarquia neoliberal sem escrúpulos e um povo que quer deter o desastre
nacional e já não admite ser manipulado. Para os sectores maioritários da
cidadania nicaraguense, tratava-se de optar por um candidato que se
comprometera a impulsionar políticas sociais como combate contra a pobreza,
multiplicar fontes de trabalho que atenuem o êxodo laboral para os Estados
Unidos, Costa Rica, El Salvador e outros países da região da América Central,
distribuir a riqueza com maior equidade, já que actualmente 10% dos
nicaraguenses detêm 40.7% da riqueza e 82% da população vive na pobreza.
Tratava-se do seguinte: ou a Nicarágua continuava sob a dominação da direita
neoliberal ou se orientava para a mudança progressista.
Nesse sentido, do mesmo modo que a oligarquia local, o poder multinacional e
o imperialismo concentravam em cada caso todo o seu poder para manter a
sua exploração e domínio sobre o povo da Nicarágua, o FSLN levou a cabo um
prolongado e disciplinado exercício de concentração de forças. Todos os
recursos materiais e humanos disponíveis através das posições conseguidas
se puseram ao serviço dessa estratégia de construção de poder dual até
recuperar a presidência.
A partir de uma perspectiva mais ampla, com vários anos pelo meio, de
avanços sustidos e finalmente acompanhada do processo eleitoral presidencial,
a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) soube instrumentar uma
estratégia prolongada e por etapas de construção de poder dual, que culminou
com o seu regresso à presidência da Nicarágua. Assim o FSLN ocupou
progressivamente, pela via eleitoral, o poder na maioria dos municípios e
departamentos e se constituiu na força maioritária no Congresso. A partir
destes avanços fundamentais e mediante uma adequada política de alianças,
conseguiu-se concretizar um conjunto de reformas que levaram à vitória sob as
próprias regras do Estado capitalista.
Por outro lado, para o triunfo de Daniel foi muito importante a solidariedade
internacional das forças de esquerda. Pela primeira vez conseguimos
contrabalançar a direita no emprego deste factor tradicionalmente decisivo. Por
sua vez, as novas condições da região favoreceram o triunfo: as derrotas
recentes infligidas ao domínio capitalista, como a derrocada da ALCA, os
desacordos na OMA que contribuíram para o G-20, os avanços do
MERCOSUR, a posição soberana da Argentina perante o FMI, etc.; governos
de esquerda e centro-esquerda em vários países; e a opção de estabelecer
boas relações comerciais, financeiras e energéticas fora das imposições
neocolonialistas do imperialismo e do neoliberalismo.
Passado o momento da vitória, fica o projecto e o exercício de governo por
realizar. Primeiro vem o difícil e incerto processo proposto por Daniel de
reconciliação nacional, que em virtude do desastre gerado pelos governos
oligárquico-neoliberais, teria de representar a recuperação da Nicarágua para
os nicaraguenses. Recuperar a pátria, a nação, a soberania, os recursos, a
economia e a «divida nacional», ou seja, a recuperação do nível de vida das
classes trabalhadoras e os sectores populares. Paralelamente, a reconstituição
da República ou no seu caso um processo de reformas profundas para dar
viabilidade à consolidação do poder nacional-popular do FSLN. No seu
conjunto, estes dois eixos constituiriam um programa integral anti-neoliberal
que permitiria assentar as bases para um projecto nacional de maiores
dimensões.
Quanto a linhas específicas, por exemplo, promover com o exterior regras de
comércio que sejam justas; liberar recursos públicos suficientes através da
reestruturação da elevada dívida externa; potenciar a educação e melhorar o
capital humano; elevar a competitividade e aumentar o investimento nacional e
estrangeiro, mas não com base em salários baixos nem «venda de garagem»
do país.
O Presidente Ortega não tem a maioria absoluta no Congresso. Esta
correlação de forças condiciona as possibilidades de criar um programa
alternativo ao neoliberalismo e cumprir as expectativas das classes
trabalhadoras e os sectores populares maioritários do país. Mas essa foi a
proposta e esse é o compromisso que o presidente Daniel Ortega assumiu,
para bem do povo da Nicarágua.
Conclusões
Nos últimos dez anos, os triunfos eleitorais das esquerdas e centro-esquerdas
têm sido resultado de longos processos de acumulação de forças favorável às
causas populares, a soberania e os interesses nacionais, no contexto do
esgotamento do neoliberalismo e das suas modalidades estatais específicas.
Com diversos graus de avanço e compromisso, e sob a forma de novos
Processos Constituintes ou só de Programas Anti-neoliberais de fundo, aí
estão, entre outros, os processos da Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua,
Brasil, Uruguai, El Salvador, República Dominicana, Guatemala, e continuamos
a lutar para que em breve o México entre nesta lista.
Num sentido geral pode dizer-se que as esquerdas e as centro-esquerdas
governam maioritariamente na região da América Latina e da América Central.
Na difícil e complexa mudança de estratégia das armas às urnas, a luta
prolongada e por etapas e o processo de construção do poder dual, estão a dar
frutos. Mas não podemos «tocar os sinos», nem confiarmos em que o processo
seguirá o seu curso «automaticamente». Faltam muitas batalhas numa guerra
ainda desigual contra as oligarquias locais, o capital internacional e o
imperialismo. A seguir será a batalha pelo Equador, que de certeza ganhará o
povo salvadorenho e a esquerda se for utilizada a estratégia adequada.
Em conclusão do que aqui apresentámos, só queremos finalizar com as
seguintes considerações:
O acesso ao poder por parte dos partidos, organizações e movimentos de
esquerda e centro-esquerda, não tem de necessariamente significar
administrar o estado do capital a favor do capital, mas sim aproveitar os
recursos que dá o aparelho de Estado para mudar as condições imperantes.
Nesse sentido, na nossa opinião poderiam apresentar-se algumas das
questões seguintes:
Em primeiro lugar, os governos de esquerda e centro-esquerda têm o
compromisso imediato e permanente de melhorar as condições materiais da
vida do povo. Depois de séculos de dominação colonial, oligárquica e
imperialista, e mais ainda com o desastre e a depredação que o neoliberalismo
lançou sobre o mundo e especialmente sobre a América Latina e a América
Central, não parecem válidos os argumentos de priorizar a estabilização e a
geração de condições favoráveis ao investimento de capital interno e externo
para o «crescimento», à custa de prolongar a entrega dos recursos nacionais e
a situação de pobreza e miséria das classes trabalhadoras e os sectores
populares maioritários. Por estas circunstâncias os povos da região recusaram
cada vez mais o modelo neoliberal e o Estado neoliberal que o apoia, e fizeram
uma viragem à esquerda apoiando propostas de soberania nacional,
crescimento económico distributivo e desenvolvimento social inclusivo.
Nesta direcção, é necessário fortalecer as capacidades distributivas e
reguladoras do Estado. Passar o mais depressa possível do Estado neoliberal
ao Estado social, com os seguintes eixos fundamentais:
1. Defender soberanamente o aparelho produtivo nacional dos embates da
oligarquia local associada ao capital internacional, como garantia do sustento
da população e do exercício irrestrito do direito ao trabalho.
2. Promover o crescimento económico com empregos dignamente remunerados,
favorecendo a recuperação do investimento produtivo e combatendo a
especulação financeira. A recuperação dos investimentos não é só um assunto
de justiça social; do ponto de vista do padrão de crescimento é vital para a
reorientação do funcionamento da economia imposto pelo neoliberalismo. Sem
uma recuperação do investimento produtivo, além da continuação do
desemprego, será impossível aspirar a uma inserção benéfica na economia
global e menos ainda superar a dependência tecnológica e financeira, que
costumam seguir juntas.
3. Prover os serviços vitais como alimentação, saúde, educação e habitação aos
sectores de menor receita. A superação da fome não será possível com
programas paternalistas de caridade que procuram manter o povo submetido
moral e animicamente, é necessário produzir bens e serviços que a população
necessita e assignar os recursos produtivos e o financiamento com essa
prioridade.
4. Continuar o processo de acumulação de forças, consolidá-lo e estendê-lo a
toda a América Latina, à América Central e a outras regiões do mundo, para
conseguir a mudança da ordem imperante. Nesse sentido, é fundamental
desenvolver horizontal e verticalmente a democracia participativa em todos os
âmbitos da convivência social, entendida como regime político e social em que
as maiorias participam directamente e decidem sobre as matérias.
5. Nesse sentido há que considerar que uma das fontes de acumulação de capital
e privilégios mais eficazes e destrutivas do capitalismo neoliberal é a
impunidade e a colusão entre grupos de interesses, e destes com o poder
público. É, portanto, necessário consolidar a legalidade e a justiça sociais,
pondo freio à impunidade e ao abuso de poder, promovendo a transparência
não só do Estado como de toda a sociedade. A prestação de contas deve ser
um valor cívico e moral que regule as relações entre o poder do Estado e a
sociedade.
6. É necessário, mesmo assim, recuperar a cidadania de vastos sectores da
população que têm sido marginalizados e degradados por razões de raça,
classe social ou género o que implica a inalienabilidade dos seus direitos
cívicos e humanos.
7. Promover o desenvolvimento da consciência nacional através de uma
educação libertadora que contribua para que o povo compreenda os factores
que explicam a sua situação de exploração, submissão e dominação, e que lhe
permita assumir a necessidade de lutar por uma nova e melhor ordem
económica, social, política e cultural.
8. Promover, afiançar e fortalecer a unidade latino-americana e dos povos
oprimidos do mundo pela defesa da soberania nacional e contra os desejos
expansionistas e de posse directa das suas riquezas pela «santa aliança» das
oligarquias locais, o capital internacional e o imperialismo. Por isso é
indispensável combater com firmeza as privatizações e o pagamento da dívida
externa, que foram constituídas a favor do capital internacional e à custa do
povo e do desenvolvimento económico.
Nesta nova etapa histórica da deslocação da correlação de forças a favor dos
povos e das esquerdas da América Latina, da América Central e de outras
partes do mundo, tem-se vindo a criar as condições para desenvolver
processos de Reformulação da República. O esgotamento do neoliberalismo, o
desgaste das instituições estatais dominadas pelas direitas e o desastre
económico e social que provocaram na nossa região, geraram amplos e
vigorosos movimentos sociais juntamente com a reorientação das maiorias
populares para posições anti-neoliberais.
Isso chegou a constituir bases formidáveis de massas já que não só é possível
mas necessário, de acordo com as condições específicas de cada país,
impulsionar processos populares de Reformulação da República, seguindo
itinerários para que em termos gerais há alguns precedentes. Nesta
perspectiva e com o apoio de massas convocar um referendo para o
desaparecimento dos poderes e a eleição de um novo Congresso ou
Assembleia Constituinte, que elabore a nova Constituição e as leis secundárias
essenciais, as quais seriam submetidas à sua aprovação pelos cidadãos. A
função primordial destas medidas consiste em abrir o caminho e estabelecer o
novo marco institucional que permita desenvolver um programa radical de
reformas económicas e sociais, com base na democracia participativa em
benefício imediato das classes trabalhadoras, os sectores populares e as
classes médias, ou seja, a maioria da população nacional; e retomar a
soberania nacional para impulsionar o desenvolvimento económico distributivo
e uma nova inserção muito mais favorável na economia regional e mundial.
Ao contrário de outros processos históricos que levaram a cabo revoluções
armadas para instrumentar processos constituintes, as condições que se têm
vindo agora a apresentar dão às esquerdas da região a possibilidade de
impulsionar e concluir processos de Reformulação da República, ou seja,
novos Processos Constituintes, pela via das urnas com apoios de massas sem
precedentes. Estão a apresentar-nos condições para concretizar novos
projectos nacionais de esquerdas, com base na soberania popular e na
democracia participativa.
Se não assumirmos o desafio e o concretizarmos, corremos o risco de ficarmos
perante uma simples administração do neoliberalismo e dos seus Estados (com
alguns ingredientes meramente simbólicos de keynesianismo) por parte das
esquerdas.
Se os governos de esquerda e de centro-esquerda que estão a levar a cabo
novos Processos Constituintes, ou os que se situaram em projectos de
reformas anti-neoliberais profundas, não contribuírem para melhorar as
condições de vida da população, debilitar os mecanismos de dominação do
capital e do imperialismo, e acumular forças no campo popular para avançar
para uma nova ordem nacional e internacional socialista, não parecem ter
muito sentido e pelo contrário podem contribuir para o desencanto, a
desmoralização, a recusa e a derrota das esquerdas nesta nova fase da
correlação de forças que se está a deslocar a nosso favor.
Cidade do México, 8 de Março de 2008.
Senador, Partido do Trabalho (México)
processos constituintes
Esgotamento do neoliberalismo
Os clássicos liberais consideram que o Estado na sua conjunção de quatro
elementos: território, população, governo e o «legítimo uso da força». Para o
marxismo, o Estado burguês é o instrumento através do qual se garante a
exploração e se mantêm a dominação da burguesia sobre o conjunto da
sociedade, instrumentadas pela combinação variável de consenso e coerção,
aceitação e repressão. Os interesses particulares da classe dominante são
apresentados pelos seus representantes políticos como se fossem os
interesses do conjunto da sociedade, usando conceitos como popular,
nacional, cidadania, bem comum, respeito, legitimidade, legalidade, etc.
Como parte da sua estrutura orgânica, no momento da sua fundação o Estado
da burguesia instituiu, através de uma Assembleia ou Congresso Constituinte,
um conjunto de normas chamadas Constituição, em que se baseia o chamado
«Estado de direito». Este Estado liberal, surgido das revoluções burguesas,
estabelece um conjunto de ordenamentos fundamentais: direito de propriedade
individual, liberdade de comércio interno e externo, liberdade de trânsito, etc.;
ordenamentos orientados para garantir o funcionamento do mercado. A função
do Estado liberal («Estado polícia») é pois, favorecer a acumulação ampliada
do capital.
Perante o desafio do sistema socialista (que a URSS representou inicialmente)
e perante a gravidade crescente das crises críticas derivadas da sua própria
dinâmica, o capitalismo substituiu o Estado liberal «puro» pelo Estado de Bemestar
ou Estado keynesiano, como consequência da Grande Crise de 1919-
1933. O qual se estendeu desde os Estados Unidos e alguns países da Europa
a outras regiões do mundo. O Estado keynesiano caracterizou-se
fundamentalmente pela intervenção do Estado na economia capitalista com
vista a suavizar a sua instabilidade e tendência para as inevitáveis crises
periódicas. Para isso recorre-se a medidas como a redistribuição do
rendimento, o investimento público, a regulação monetária, a segurança e os
serviços sociais, e em geral, garantir condições favoráveis para o
desenvolvimento do sistema capitalista.
Na década dos anos setenta a funcionalidade do Estado keynesiano chegou ao
fim. Começa a inflação galopante, declara-se a «crise fiscal do Estado» e
sobrevêm a crise capitalista internacional de 1974-1975, que conjuga os
problemas de sobreacumulação do capital e estagflação (derrapagem com
inflação), pela primeira vez na história do capitalismo. O modelo keynesiano foi
substituído pelo monetarismo de Milton Friedman e pelo Estado neoliberal,
cujas «políticas de ajuste estrutural» postularam três eixos fundamentais: 1)
controle da inflação, 2) equilíbrio fiscal, e 3) estabilização dos tipos de Câmbio.
A estas medidas juntaram-se outras que acabaram por completar o que em
1990 se denominou «Consenso de Washington», entre elas: privatização de
activos públicos, liberalização comercial, desregulamento económico,
autonomia de bancos centrais, garantia da propriedade intelectual e,
destacadamente, o livre fluxo de capitais. E acrescentaríamos: cancelamento
de conquistas laborais e enfraquecimento das legislações na matéria. Nas
principais potências estabeleceram-se governos conservadores (Tatcher,
Reagan, etc.), e nos países dependentes iniciou-se o longo ciclo dos governos
neoliberais. Impôs-se o prolongado domínio, ainda não concluído, do que se
denominou «Modelo Neoliberal», mediante a poderosa pressão combinada da
dívida externa, os programas do FMI e do Banco Mundial, e a «diplomacia»
dos Estados Unidos, com a cumplicidade das oligarquias locais dos países
dependentes. Em 1988, Peter McNamara, presidente do Banco Mundial,
afirmou que o modelo tinha fracassado nos países desenvolvidos, mas
manteve-se ferreamente em todo o Terceiro Mundo e aplicou-se também à
URSS e Europa Oriental a quando da derrocada.
Devemos recordar que o modelo neoliberal se introduziu inicialmente sobre a
dor e o sangue do povo chileno pelo golpe de Estado cometido contra o
Presidente Salvador Allende em 1973 por Augusto Pinochet. Depois na década
de 1980 foi-se alargando até abarcar toda a região da América Latina e a
América Central e outros continentes.
A 3ª Revolução Científico-Tecnológica (informática, comunicações, etc.)
iniciada na década de 1970 favoreceu a configuração da GLOBALIZAÇÃO
NEOLIBERAL. O domínio esmagador das corporações internacionais e do
capital financeiro (sobretudo especulativo) alargou-se a todo o mundo:
— 3000 mil empresas internacionais, principalmente do G-7 (Estados Unidos,
Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Canadá e Itália), concentram quase
metade da produção mundial de bens e serviços.
— Em 1973 as transacções diárias do capital financeiro somavam 15 mil
milhões de dólares, em 1986 e alcançavam os 200 mil milhões, e no ano 2000
chegavam ao estratosférico número de 2 milhões de milhões de dólares.
Como afirmava Osvaldo Martinez: «O mercado financeiro global é a criatura
mais perfeita da globalização neoliberal», mas «é também a derrota do
crescimento económico, do emprego e da economia real que o sustentam». De
sócio menor, transformou-se em dono absoluto da economia mundial.
As exportações e os fluxos de capital financeiro constituíram-se nos principais
«motores» da economia mundial, mas o grosso do comércio já não se faz entre
países mas entre firmas, o que reduz notavelmente as contribuições tributárias;
e a mobilidade sem restrições do capital financeiro tem a faculdade de manter
ou derrubar economias nacionais inteiras da noite para o dia. Sobre todas
estas condições (e o poder militar) edificou-se e ainda se mantêm a hegemonia
dos Estados Unidos. Mas no transcurso das três décadas passadas foram-se
configurando os três grandes blocos em que está dividida a economia mundial
com as suas potências articuladoras: a União Europeia (Alemanha e França), o
leste asiático (Japão) e a América do Norte (Estados Unidos). Nestes anos e
no futuro próximo estão a emergir outras potências que mudarão o cenário:
China, Índia, Coreia do Sul e Brasil. Os Estados Unidos estão a caminho de
pagar os custos das suas ambições imperiais: crise económica, derrotas
diplomáticas e perda das suas posições privilegiadas na geopolítica mundial.
Os governos neoliberais e os seus «intelectuais orgânicos» venderam a ideia
de que a globalização é uma, e a inserção na mesma também é única. Falso.
Na realidade observam-se diferentes modalidades de inserção:
— a neoliberal heterodoxa: Estados Unidos, Reino Unido e outros.
— a «social-democracia» europeia: França, Alemanha, Itália, Espanha, etc.
— a do leste asiático: Coreia do Sul, Singapura, Taiwan, etc.
— o «socialismo de mercado» da China e do Vietname.
— a neoliberal mortal da América Latina e América Central.
A que se tem seguido na nossa região foi económica e socialmente desastrosa.
Em termos económicos representou a entrega dos nossos países às
companhias internacionais e ao capital financeiro internacional; e em termos
sociais, um retrocesso de quase três décadas. Entre os seus efeitos
específicos mais notórios temos:
— «libarización» do Estado-nação
— desnacionalização dos recursos estratégicos
— derrapagem económica
— encarecimento geral dos bens e serviços, principalmente os básicos
— encerramento de empresas
— redistribuição regressiva do rendimento
— agudização da desigualdade
— aumento massivo do desemprego
— aumento nas taxas de exploração sobre a força de trabalho
— precarização do trabalho
— diminuição do poder aquisitivo das classes trabalhadoras
— redução da cobertura assistencial pelo Estado
— eliminação dos direitos sociais
— aumento desmedido da pobreza
— marginalização regional
— anulação da função ou submissão dos sindicatos
O neoliberalismo já levou os Estados nacionais a destruir até as condições
limitadas de bem-estar conseguidas sob o Estado keynesiano, generalizando e
aprofundando as suas políticas económicas e sociais com o fim de atrair os
fluxos internacionais de capital financeiro. As políticas neoliberais
desarticularam a estrutura económica dos países menos avançados para tornar
inviável qualquer plano económico que não seja consistente com uma inserção
subordinada. Impediram realizar a tarefa pendente de gerar as condições que
permitam atender as necessidades da população e de reprodução do aparelho
produtivo, de tal forma que o processo de acumulação não dependa do
exterior.
O efeito geral de tudo isto reflecte-se na conversão dos sistemas capitalista
mundial numa espécie de «apartheid global»: um pequeno conjunto de países
com economias muito ricas e o resto do mundo submerso na derrapagem e no
atraso. Para complementar e reforçar esta situação, foi-se passando do
respeito formal à soberania nacional, ao descarado intervencionismo militar do
imperialismo dos Estados Unidos em qualquer parte do mundo.
E no plano político, o neoliberalismo está a gerar a crise das principais
instituições do próprio estado capitalista, ao serem submetidas aos poderes do
capital financeiro (principalmente especulativo) nacional e internacional, das
empresas internacionais e dos consórcios que monopolizam os meios de
comunicação. Desde logo, o neoliberalismo recrudesceu e pôs em evidência a
anulação de facto da representação das maiorias cidadãs. A cidadania vota, o
capital manda. A partir de uma perspectiva mais geral, tudo isto pode ser
entendido como um processo brutal de perda de identidade (e mesmo da
possibilidade de existir) dos indivíduos e da pertença aos colectivos nacionais,
que seria outra maneira de expressar a perda da Pátria, da Nação.
Este foi o processo hegemónico no mundo ao longo das últimas três décadas.
No entanto, desde finais da década de 1990 começaram a ser evidentes os
sinais do seu esgotamento, por ter agravado os problemas que supostamente
se destinava a resolver: instabilidade e derrapagem económica, concentração
do rendimento e desigualdade, pobreza e falta de oportunidades das maiorias
sociais, autoritarismo e exclusão, entre outros. Isto vem sendo expresso no
protesto dos povos e na sua procura de caminhos alternativos.
Viragem para esquerda na América Latina
A região da América Latina e América Central está a passar por um período
histórico novo da luta de classes. A viragem para a esquerda que o mundo
começou a experimentar a partir de finais da década de 1990, como
consequência do fracasso e esgotamento do neoliberalismo, cobrou força na
América Latina e América Central. As crises económicas em vários países
(México, Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Uruguai, Paraguai, etc.), ocorridas
nos anos noventa, são disso claras expressões. Os sucessivos triunfos das
esquerdas e centro-esquerdas na região são expressões da viragem para
outras alternativas para o desenvolvimento dos povos. Constituem a primeira
resposta popular regionalizada com projectos alternativos ao neoliberalismo.
As organizações de massas, os movimentos sociais e os partidos que
confluíram nestes processos constituíram plataformas programáticas diversas,
cujos principais eixos foram: a luta anti-imperialista; a recusa do neoliberalismo
com as suas privatizações, desregulações, tratados de comércio livre,
encerramento de empresas, desemprego, deterioração salarial e de nível de
vida, aumento da pobreza, inflação ou desavaliação; contra as fraudes
eleitorais; e contra a potenciação do narcotráfico, a violência e o
desgarramento do tecido social.
O descontentamento social que inaugurou as lutas sociais expressou-se de
formas diferentes nos vários países, entre os quais se destacam: protestos de
rua, rebeliões massivas e generalizadas, e a participação inabitual nos
processos eleitorais, que em vários casos culminaram com o triunfo e o acesso
ao poder presidencial, sob as próprias regras do Estado neoliberal.
Entre as reivindicações fundamentais inscritas nestes processos de luta de
massas pelo poder do Estado, destacam-se: recuperação da soberania
nacional; anulação das privatizações; nacionalização dos recursos naturais e
dos sectores económicos estratégicos; recuperação do Estado da sua função
redistributiva do rendimento; reforma agrária ou, no seu caso, melhoramento da
regulação da matéria; extensão e melhoramento dos serviços públicos para o
desenvolvimento social; democratização real da vida política pela via de
desenvolver a democracia participativa; e reconhecimento dos direitos dos
povos indígenas.
Estas reivindicações, articuladas de maneira específica em cada país,
representam o conteúdo de sistemas complexos de alianças em que
participaram camponeses, operários, indígenas, professores, intelectuais,
burocratas, estudantes, sectores populares, importantes segmentos das
classes médias e até empresários nacionalistas.
Estamos assim a transitar, por um intenso, complexo e árduo processo que
está a modificar o mapa político actual da América Latina, a partir do acesso ao
poder do Estado pela via das urnas, de alianças ou frentes sociopolíticas
populares de esquerda ou centro-esquerda. Este processo, excepção na
década passada, apresenta-se como regra na década actual. A América Latina
desloca-se para a esquerda e governa maioritariamente no sub-continente.
Permitimo-nos agora apresentar alguns elementos para a reflexão dos
processos da Venezuela, Bolívia, Equador, Brasil e Nicarágua.
Venezuela
O processo nacional constituinte da República Bolivariana da Venezuela
reveste-se de particular importância pelas suas características e pela sua
orientação para o que o Presidente Hugo Chavez denomina «o socialismo do
século XXI».
A derrota da ditadura de Marcos Pérez Jiménez em 1958 representou o início
de uma nova etapa no sistema político venezuelano, caracterizado pelo
restabelecimento da democracia representativa sob a condução dos partidos
políticos assinantes do «Pacto de Punto Fijo» e a elaboração de uma
Constituição aprovada em 1961. Os mesmos actores políticos alternavam-se
no poder político durante a denominada «Quarta República». No decorrer de
vários lustros a classe política foi-se corrompendo de modo cada vez mais
aberto, marginalizando e submergindo grande parte da população na pobreza.
A adopção total das políticas neoliberais em finais dos anos oitenta agravou a
situação económica e social do país, desembocando no famoso «caracazo»
(1989)
Neste marco de corrupção, derrapagem e crise económica, instabilidade
políticas e intensos protestos populares, Hugo Chavez apareceu no cenário
político com o golpe militar que liderou em Fevereiro de 1992. Embora não
conseguisse os seus objectivos, foi o ponto de partida do processo da
Revolução Bolivariana e que lhe permitiu tornar-se mais tarde na esperança
para os sectores populares maioritários e outros grupos sociais, de um
processo de mudanças na Venezuela. Depois de ter cumprido a sua
condenação e de fazer uma viragem para a via eleitoral, Chavez promoveu a
articulação de partidos de esquerda e centro-esquerda no chamado «Polo
Patriótico»: Partido Comunista da Venezuela (PCV), Pátria para Todos (PPT),
Movimento Bolivariano Revolucionário (MBR-200), Movimento V República
(MVR) e o Movimento para o Socialismo (MAS).
Ganhou a eleição presidencial de 6 de Dezembro de 1998 com 56% dos votos
e uma abstenção de 36,5%. Hugo Chavez chegou ao poder pela via eleitoral,
aceitando as regras da democracia representativa. Desde esse momento
iniciou o seu principal compromisso de campanha: refundar a República
mediante uma Assembleia Nacional Constituinte. O triunfo eleitoral de Chávez
é o triunfo de sectores excluídos desde 1958 da política e dos benefícios do
rendimento petrolífero, e dos danos do modelo neoliberal desde os anos
oitenta,
Dois meses depois de ocupar o cargo, o Presidente Chávez emitiu um Decreto
convocando um referendo consultivo para que o povo manifestasse a sua
aceitação ou recusa de uma Assembleia Nacional Constituinte para reformar o
país e criar a V República mediante a democracia social e participativa. Os
partidos tradicionais impugnaram a medida perante o Supremo Tribunal de
Justiça, mas foi negada, porque o Presidente da República tinha essa
faculdade. Aliás, segundo um inquérito sério, a convocatória para um referendo
consultivo gozava de 70% de apoio da população. O referendo consultivo
realizou-se a 25 de Abril de 1999.
A popularidade e o carisma do Presidente Chávez (84% de aceitação) foram
determinantes para o êxito do SIM. A oposição fez campanha pelo NÃO
através da organização «Venezuela Civil» e dos partidos políticos tradicionais.
O resultado foi arrasador. O SIM obteve 90% de apoio, com uma participação
de 40%. Assim, a proposta do Presidente Chávez foi aprovada de forma
democrática e participativa como nunca acontecera na história da Venezuela.
A eleição dos membros que integrariam a Assembleia Nacional Constituinte foi
fixada para 25 de Julho de 1999. A disputa democrática concentrou-se em
obter o maior número de membros da Constituinte. Um total de 1 167 cidadãos
disputou 128 lugares da Constituinte. Novamente a figura do presidente
Chávez foi determinante no resultado deste processo. Esta campanha foi
bastante ampla e participativa devido aos cidadãos independentes, professores
universitários, dirigentes operários, etc., etc. Tiveram que recolher assinaturas
para se inscreverem como candidatos à Constituinte. Houve, pois, um enorme
debate nacional sobre o rumo que o país deveria tomar.
Os resultados da eleição à Constituinte favoreceram o projecto do presidente
Chávez e o Polo Patriótico que obteve mais de 100 dos 128 lugares. A
Assembleia Nacional Constituinte instalou-se a 15 de Agosto de 1999, com a
missão de elaborar uma Nova Legislação Jurídica Nacional que sustentasse
um novo projecto de nação com bem-estar económico e social, um sistema
político de democracia participativa. Concluída esta histórica tarefa, a
Assembleia Nacional Constituinte fez um referendo vinculativo a 15 de
Dezembro de 1999, para aprovação ou recusa do projecto da nova
Constituição. O resultado foi de 71,2% pela aprovação, com uma abstenção de
53%. Pela primeira vez na história da Venezuela, foi submetida à aprovação do
povo uma Constituição Nacional.
O processo constituinte da República Bolivariana da Venezuela abriu o
caminho para o desenvolvimento do projecto do socialismo do século XXI.
Criou bases sociopolíticas fortes para superar os desafios do golpe de Estado
da oligarquia venezuelana conluiada com o imperialismo norte-americano de
Abril de 2002, e da paragem petrolífera em PDVSA em finais do mesmo ano,
com um prejuízo de vários milhares de milhões de dólares para o Estado e
para o desenvolvimento do país. Mas também estabeleceu o marco jurídicopolítico
para que o mesmo mecanismo da democracia participativa permitisse
ao povo venezuelano, mediante uma pequena maioria, dizer Não ao presidente
Chávez no seu projecto de reeleição indefinida e de incorporar ao texto jurídico
o propósito de construir o socialismo do século XXI.
Nesta situação encontra-se hoje o processo da Revolução Bolivarina da
Venezuela para que o processo Constituinte contribuiu de forma fundamental:
avançando no seu projecto de reforma do país com uma orientação socialista,
mas pressionada a partir de dentro pela oposição oligárquica de significativos
sectores médios, e de fora pelo imperialismo norte-americano e pelos seus
governos aliados na região.
Bolívia
Em 1985 implantou-se na Bolívia o modelo neoliberal. Desde então e até à
subida de Evo Morales à presidência da República, o país manteve-se na
derrapagem e atraso económico e social, na condição de saque dos seus
recursos por parte da aliança entre o imperialismo norte-americano, as
empresas internacionais e a oligarquia local, e esmagado por governos
autoritários sob o disfarce do restabelecimento da democracia formal.
Sob o governo de Evo Morales as coisas mudaram. De uma situação de défice
fiscal crónico passou-se ao superavit. As reservas monetárias internacionais
duplicaram. A dívida externa diminuiu substancialmente. Aumentou a níveis
sem precedentes o comércio internacional. Recuperou-se a propriedade sobre
os hidrocarbonetos, foram obtidos melhores preços para o gás e a fazenda
pública recebeu maiores impostos por estes recursos. Paralelamente adoptouse
a austeridade como princípio firme nas despesas públicas. E adoptaram-se
mecanismos de transparência na operação governamental.
Tudo isso contribuiu para o melhoramento das condições de vida e de trabalho
das classes e sectores populares maioritários. Mas também contribuiu para o
restabelecimento e recuperação do modo de vida das classes médias que
durante vários lustros saíam do país pela anulação de opções de vida. Não
obstante, estes sectores médios resistem a aceitar as mudanças favoráveis
que o país sofre, alinham-se com os grupos oligárquicos que mediante a
ameaça de separatismo e a mobilização violenta procuram obstruir o processo
da Revolução Boliviana, que entrou na sua etapa constituinte, e derrubar Evo
Morales.
Um certo número de governos departamentais (6 de 9) procurou criar uma
frente de resistência contra o governo de Evo Morales e o processo
constituinte. O seu objectivo principal é fazer gorar o processo no seu conjunto,
mas querem de conseguir pelo menos uma influência importante na
determinação das políticas económica, energética, territorial e social. E não
duvidariam em provocar a ruptura territorial do país em exclusivo benefício da
oligarquia e dos interesses do imperialismo e das corporações internacionais. A
fim de restabelecer os seus privilégios e lucros adicionais de que gozaram sob
os governos neoliberais, opõem-se radicalmente a qualquer medida de
fiscalização e coordenação do governo nacional. No entanto estes interesses
oligárquicos viram-se limitados pelos sectores sociais maioritários dos seus
departamentos, exigindo inclusivamente a renúncia dos governantes aos seus
cargos.
Entre os principais objectivos de ataque da oligarquia estão: impedir a
reconstrução da empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos;
desarticular a exploração mineira e impedir a sua recuperação pelo Estado
como proprietário do subsolo, despedindo pessoal e recontratando com
salários miseráveis e sem segurança social; e manter o novo governo
enredado nestes conflitos para impedir que realize i programa de mudanças
que propôs, entre os quais: uma redistribuição importante da riqueza, a
geração de empregos, o abastecimento alimentar, a construção de casas, a
extensão dos serviços básicos e a redução da migração, tudo isso a favor das
classes trabalhadoras e dos sectores populares maioritários.
Nesta situação encontra-se a fase constituinte da Revolução Bolivíana, com
uma correlação de forças favorável mas ainda insuficientemente consolidada e
com grande desafios económicos e sociais que se não forem atendidos podem
corroer as bases sociopolíticas da reconstituição da república, da recuperação
da nação para todos os bolivianos e da conformação das bases para
desenvolver um projecto nacional de esquerdas.
Equador
O presidente do Equador Rafael Correa, afirmou que uma ideia de há mais de
meio século, «voltar a ter pátria», foi a inspiração de um conjunto de
equatorianos que decidiram libertar-se dos grupos que mantiveram a nação
sequestrada, e iniciar uma mudança radical do sistema económico, político e
social vigentes. Nestes termos está instalado o processo constituinte que o
país vive. A esses extremos de «recuperar a Pátria» levou o povo equatoriano
o neoliberalismo e a aliança do imperialismo com a oligarquia local. Essa
esperança, que se espalhou por todos os rincões do país, permitiu o triunfo
eleitoral à Aliança País a 26 de Novembro de 2006.
Começou uma nova história. Os eixos fundamentais da mudança radical são:
— a revolução constitucional. Mediante a Assembleia Nacional Constituinte
apoiada pela maioria do povo, dotar o Equador de uma nova Constituição que
o prepare para o século XXI e contribua para superar o neoliberalismo.
— a luta contra a corrupção. Cancro disseminado por todo o corpo da nação
que o neoliberalismo agudizou e que se expressou na decomposição social, a
violência, a desigualdade e a pobreza generalizadas. Para isso procura-se
colocar os melhores homens e mulheres à frente das instituições do Estado,
melhorar a informação do sector público, endurecer as leis anti-corrupção para
funcionários e sector privado, organizar controles de cidadãos, reformar todas
as leis que geram e protegem privilégios de todo o tipo, assim como as leis que
propiciam o endividamento ilimitado do país e o saque dos seus recursos, e
não deixar impunes os delitos do passado nessa matéria.
— a revolução económica. Acabar com o Consenso de Washington. A
aplicação das políticas neoliberais, esse «populismo do capital», foi um rotundo
fracasso e as suas consequências foram desastrosas. O Equador só cresceu
em termos per capita a partir de finais dos anos oitenta, proliferou a
privatização de dinheiros públicos, perdeu-se a moeda nacional com a
dolarização, a desigualdade aumentou, o desemprego duplicou, aumentou a
emigração massiva, perdeu-se soberania e caiu-se na ingovernabilidade por
um período muito prolongado. Nestas condições exige-se que o Estado, a
planificação e a acção colectiva recuperem o seu papel essencial para o
progresso. Priorizar uma política soberana que coloque o desenvolvimento do
ser humano por cima do capital, com especial atenção para os mais pobres.
Adoptar uma nova política de endividamento externo que o autorize quando
seja estritamente indispensável e se utilize para investimentos produtivos.
Acompanhar isto com a promoção de uma acção concertada dos países
devedores para uma reforma à arquitectura financeira internacional, redefinir a
sustentabilidade do serviço da dívida, determinar a dívida legítima e
estabelecer um Tribunal Internacional de Arbitragem de Dívida Soberana. E
adicionar a isso a integração financeira regional com a criação do Banco do
Sul, o qual implicaria desprezar essa cessão de soberania que representa a
autonomia do banco central.
Desprezar esses disfarces da sobre-exploração laboral como são a
«flexibilização», «terciarização» e «precaridade». Nesse sentido, quer-se
construir uma legislação laboral regional que recupere a dignidade do trabalho
humano. E estabelecer como principal árbitro das relações económicas
internacionais a cooperação, complementaridade e coordenação do
desenvolvimento mútuo.
— a revolução na educação e saúde. O Equador tem sido um dos 5 países
da região com menor investimento social per capita, pelo que chegou a
representar apenas 25% do promédio regional. Num processo de mudança
radical é imperativo reverter tal situação. O investimento no ser humano
constitui a melhor política para um crescimento a longo prazo com equidade.
Para isso é necessário libertar recursos de outras áreas, especialmente da
dívida externa. A política social deve ser parte fundamental da política
económica.
Neste eixo de mudança radical está o tema de migração, os exilados pela
pobreza. Talvez a maior expressão do fracasso do modelo neoliberal é a
destruição brutal do emprego e a consequente migração de milhões de
equatorianos em busca de uma vida digna. Absurdamente, são estes migrantes
que em boa medida têm sustentado a economia nacional com as suas
remessas, enquanto a oligarquia remete os seus lucros para o exterior. Este
país é mantido pelos seus pobres. Perante isso o processo constituinte e a
Assembleia Legislativa vão incluir três representantes permanentes dos
migrantes; e vai instituir-se a Secretaria Nacional do Migrante com estatuto de
Ministério.
Quanto aos sectores mais vulneráveis da sociedade, a república constituída e o
seu governo vão assumir a fundo a luta contra a discriminação em todas as
suas formas: económica, de género e étnica. E para dar atenção especial às
crianças de rua, a exploração do trabalho infantil, as mães solteiras, os
incapacitados e doentes terminais, foi resolvido criar a Secretaria da
Solidariedade Cidadã.
— resgate da dignidade, soberania e construção da integração latinoamericana.
Neste último eixo de mudança decidiu-se que o processo
constituinte e a nova etapa na história do país vão permitir ao Equador
recuperar a sua dignidade como nação independente e soberana, e
empreender um processo de construção da grande nação sul-americana e a da
«Pátria Grande» por que lutaram San Martín, Bolivar e muitos outros próceres.
Trata-se de construir horizontes de irmandade e fraternidade entre os povos
soberanos da América do Sul e de toda a região latino-americana e de centro.
Numa resumida síntese, é este o processo constituinte que o Equador
atravessa sob a presidência de Rafael Correa, no marco de uma deslocação na
correlação de forças desde o ano de 2002 até à data a favor das classes
trabalhadoras, os povos indígenas e os sectores populares maioritários do
país.
Brasil
Em 1985 o primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura militar, José
Sarney, com o fim de erradicar ou pelo menos controlar a inflação e a dívida
externa impôs um programa de austeridade. Nesta década os trabalhadores
formaram a Central Única de Trabalhadores (CUT) independente e um partido
político classista, o Partido dos Trabalhadores (PT). Em Outubro de 1988
entrou em vigor uma nova constituição, que permitiria fortalecer a democracia.
Em Dezembro de 1989 Luís Inácio Lula da Silva e o PT estiveram a 2% de
ganhar a presidência, mas foi eleito Fernando Collor de Mello, candidato do
Partido Conservador de Reconstrução Nacional, As suas medidas drásticas de
luta contra a inflação provocaram uma das mais graves recessões que o Brasil
conheceu numa década. A Câmara de Deputados lançou um processo contra
Collor por corrupção e este renunciou a 28 de Dezembro de 1992. Itamar
Franco foi então investido oficialmente como presidente do Brasil. Em
princípios dos anos noventa o modelo económico baseado em capitais estatais
e multinacionais estava em crise: a hiperinflação era de 1000%, os pagamentos
da dívida cresciam e prevalecia uma derrapagem relativa da economia.
Fernando Henrique Cardozo assumiu a presidência a 1 de Janeiro de 1995,
iniciando um intenso programa neoliberal: a inflação foi parcialmente parada,
acelerou as privatizações, aumentou os intercâmbios com os países aderentes
ao MERCOSUR, o país avançou economicamente, mas subsistiram e até
aumentaram os níveis de pobreza. As políticas neoliberais foram cada vez mais
questionadas pelos movimentos sociais e a esquerda, destacadamente o MST
e o PT.
Em Outubro de 1998 Cardoso foi reeleito com cerca de 54% dos sufrágios,
contra 22% de Lula, Cardoso prosseguiu o seu programa neoliberal de acordo
com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o que provocou o surgimento de
uma crise financeira profunda e que chegou quase ao colapso em 2002; a
dívida externa chegou a cerca de 250 mil milhões de dólares com pagamentos
de 30 mil milhões de juro, 20 mil milhões em fuga de capitais, a queda do
Produto Interno Bruto, reponta da inflação, desavaliação, aumento do
desemprego e a deterioração profunda e generalizada dos níveis de vida da
maioria da população. Esta crise sacudiu a economia brasileira e
desestabilizou a dos seus vizinhos do MERCOSUR, principalmente a da
Argentina. O FMI e os países ricos concordaram entregar 41 mil milhões de
dólares ao Brasil, com medo que se desencadeasse uma crise financeira
mundial.
Depois dos bons resultados para o PT nas eleições municipais de 2000, na sua
quarta tentativa Lula ganhou a presidência do Brasil a 27 de Outubro de 2002
com uma votação histórica, depois de doze anos de regimes neoliberais que
levaram a uma profunda crise a oitava economia mais importante do mundo e
aumentaram extraordinariamente a pobreza.
No meio de enormes pressões pela oligarquia local, o capital financeiro
internacional, as internacionais e o governo dos Estados Unidos, as
preferências do povo por Lula mostraram um elevado nível de consciência
política e de deslinde das políticas implementadas pelo governos de Collor de
Mello e Cardoso. Essas pressões concentraram-se por razões específicas:
liquidar a coluna vertebral do MERCOSUR e a convicção crescente
nacionalista de importantes fracções do capital brasileiro, que impediram a
ALCA e ameaçavam destruí-la, o que finalmente aconteceu com o triunfo de
Lula e do PT.
Foi a confirmação por via eleitoral, da recusa clara dos povos da América
Latina e da América Central do neoliberalismo, e das políticas do chamado
Consenso de Washington (1991). O seu significado político ultrapassou o Brasil
e repercutiu na correlação de forças da região. Elevou as expectativas, a moral
e a disposição de luta dos povos latino-americanos.
Esperava-se que Lula e a frente sociopolítica articulada pelo PT contribuíssem
para a cumulação de forças na luta contra o imperialismo e as suas políticas
neoliberais, na base de manter a mobilização do povo brasileiro e a promoção
da unidade latino-americana. O que estava em jogo no Brasil não era uma
revolução anti-capitalista, mas sim um governo que criava condições para
avançar nessa direcção. Só parcialmente os factos se aproximaram dessas
expectativas.
Perante a evidente quebra que as políticas neoliberais tinham provocado no
sector empresarial, devido à distribuição desigual dos benefícios da
globalização entre as diferentes fracções do capital, Lula procurou inclinar
ainda mais a seu favor a correlação de forças. E promoveu a aliança com
representantes dos empresários mais proeminentes não só para ganhar mas
também para governar. Juntou a isso que a política económica do novo
governo não era nada clara, e que a burguesia brasileira estava muito
consciente das implicações em optar por uma política de submissão ao capital
internacional. A pergunta crucial a que Lula tinha de responder era esta: é
preciso o neoliberalismo para pactuar com fracções do empresariado?
Aparentemente, nesses anos a resposta de Lula foi que não, considerando que
várias fracções do empresariado nacional em países como o Brasil se viram
obrigadas a confrontar o neoliberalismo como uma forma de sobrevivência,
possibilitando alianças para governar com base em programas que apontam à
recuperação do dinamismo interno da economia como uma forma de romper as
cadeias impostas pela globalização neoliberal. No entanto, pode ter
considerado também que o capital não é capaz de aceitar que essas alianças
se orientassem na direcção de uma lógica democrática e popular, porque no
momento em que conseguissem colocação nos mercados globais perderiam
todo o incentivo para impulsionar programas nacionais de governo.
Em todo o caso, as medidas e o desempenho do governo Lula confirmaram o
seu reposicionamento a respeito do projecto anti-neoliberal originário com o
que conseguiu a presidência: o cumprimento dos acordos com o FMI (o juro da
dívida externa representa 3.5 vezes a soma destinada à educação, a saúde e a
reforma agrária), o gabinete inicial e as suas mudanças, a política económica
mais permeada pelo Consenso de Washington (por exemplo, a economia
encontra-se totalmente aberta aos grandes movimentos de capitais, e o
governo não conta com instrumentos de defesa em casos de ataques
especulativos), a reforma do sistema de pensões, a atenção insuficiente aos
programas da Reforma Agrária e «Fome Zero», o distanciamento do MST, os
problemas do PT, entre outros assuntos fundamentais. As políticas sociais
impulsionadas por Lula são importantes para dar resposta à população mais
pobre, mas são insuficientes para resolver a profunda desigualdade existente
no país. De facto, não se aprecia a instrumentalização de reformas estruturais
anti-neoliberais de importância, e pelo contrário tem-se visto interesse em
baixar o perfil de políticas que pudessem gerar tensões com poderes actuantes
internacionais. O que não deixa de mostrar a modificação da aliança de classes
em que o governo se tem apoiado.
Para retomar o projecto original de Lula e o PT e cobrir os compromissos
populares, são necessárias mudanças estruturais anti-neoliberais na economia
e na política. A continuação do modelo neoliberal impede o crescimento da
economia e um verdadeiro desenvolvimento nacional. Com o actual projecto
beneficiam-se primordialmente o sistema financeiro e bancário, e as empresas
multinacionais que aproveitam os recursos naturais e a mão-de-obra
embaratecer para aumentar as suas exportações. É quase impossível, no
marco deste modelo, investir nas prioridades do país e nas necessidades da
população. Seria necessário, pelo menos, retomar a rota proposta em 2002:
um projecto de desenvolvimento nacional que tenha como eixos o crescimento
permanente, o desenvolvimento local e o combate à desigualdade social.
O que aconteceu com o que se denominava «governo da esperança latinoamericana
» é muito sintomático e deveria chamar-nos a reflectir quando se
trata de alianças de classes para governar. Nalguns casos foi privilegiado o
aproximar do centro, adaptando o discurso e os programas ao âmbito da
social-democracia, quando provavelmente o recomendável seria definir um
programa que abarcasse o que fazer no caso de ganhar o governo, e a partir
daí levar a cabo uma estratégia de alianças ampla e necessária para avançar
na direcção acima enunciada.
A luta é complicada porque os Estados Unidos são uma super potência militar
que decidiu apropriar-se do mundo e lança mão de mecanismos que vão da
cooptação à chantagem de regimes democráticos, ou agressão aberta, como
as que se centralizaram sobre o governo constitucional do presidente Hugo
Chávez na Venezuela. Dadas essas circunstâncias, torna-se possível e
eventualmente necessário estabelecer alianças com sectores empresariais. No
entanto, a sua disposição de confrontar o imperialismo termina quando
conseguem a sua participação nos mercados. Ainda assim, atrair estes
sectores a um programa de governo alternativo ao neoliberalismo permite
acumular forças e defender a soberania nacional. Por essa razão a esquerda
deveria incorporar essa dimensão no seu trabalho, mas não substituir as suas
responsabilidades históricas pela gestão do Estado burguês, porque acabará
por trair os seus princípios. As lições do Brasil são essenciais para as
definições estratégicas, nas nossas lutas pela soberania e o bem-estar dos
nossos povos.
Nicarágua
O FSLN chegou ao poder pela via revolucionária em 1979 derrubando a
ditadura somozista. Como consequência do bloqueio do imperialismo norteamericano
que devastou a economia do país, do financiamento feito pela
contra-revolução e de uma guerra que durou dez anos e custou 50 mil mortos,
Daniel Ortega e o sandinismo perderam o poder nas eleições de 1990. Agora
recuperaram-no novamente pela via eleitoral.
Daniel Ortega Saavedra ganhou a presidência a 5 de Novembro de 2006 com
38% de votos, contra 30% de Montealegre (Aliança Liberal) e 26% de Rizo
(Partido Liberal Constitucionalista), os candidatos mais importantes da direita
nicaraguense. Foram as eleições presidenciais e legislativas mais observadas
desde os comícios de 1990. O Presidente do Conselho Supremo Eleitoral
informou que se inscreveram mais de 17 000 observadores, dos quais 1 000
eram estrangeiros, além dos 422 jornalistas também estrangeiros.
O marco jurídico em que se deu este resultado veio da reforma constitucional
da Lei Eleitoral que os sandinistas assinaram com o PLC em 2002 e 2004.
Todo se fez de acordo com a lei, respeitando escrupulosamente a sua letra.
Aproveitou-se o marco legal capitalista para avançar posições num processo
prolongado, que vinha de alguns anos atrás, de construção do poder popular.
O qual mostra, ao contrário de outros processos recentes, que os acordos e
alianças tácticas com a direita não têm que significar a deposição de princípios
nem colocar de lado o objectivo estratégico.
Desde logo, os sectores conservadores e da pequena burguesia com os seus
representantes políticos e intelectuais, iniciaram uma grande campanha para
denunciar como «assalto à democracia» o pacto assinado. Argumentaram que
conforme à Lei Eleitoral, as juntas eleitorais ou mesas receptoras de votos
ficavam todas sob o controle do FSLN e do Partido Liberal; que a autoridade
eleitoral, de cima a baixo, não era independente mas sim partidária. É um facto
ultra-comprovado que se a lei e a autoridade eleitoral estivessem debaixo do
seu controle, guardariam silêncio e nada lhes parecia suspeito de
antidemocrático. Assim é a luta pelo poder.
O panorama da contenda era muito complexo pelas características e o
resultado da eleição presidencial anterior, em que na recta final a oligarquia, o
governo norte-americano e a hierarquia católica «atiraram a carne toda para o
assador» e surgiram com o triunfo perante o assombro e a sensação de
impotência do FSLN. Mas também complexo pelos riscos distintivos dos
próprios opositores: Daniel Ortega e Jaime Morales Carazo pelo FSLN; os
reformistas-sandinistas do MRS liderados por Edmundo Jarquin e Carlos Mejía
Godoy; o Partido Liberal Nicaraguense-Partido Conservador (ALN-PC) com
Eduardo Montealegre e Fabricio Cajina; e Edén Pastora e Mercedes Tenório.
Neste contexto, fiel à sua eficaz estratégia do medo, a aliança entre a direita
política, a oligarquia e os representantes do imperialismo norte-americano,
apresentaram a eleição como um dramático dilema nacional, afirmavam: «nas
eleições de 5 de Novembro a Nicarágua tem duas opções;: alistar-se na
aliança da ultra-esquerda «afugenta o capital» liderada por Hugo Chávez e o
moribundo Fidel Castro, ou caminhar para um futuro mais democrático, de
progresso económico e social dentro do marco económico e jurídico do Tratado
de Livre Comércio entre a República Dominicana, a América Central e os
Estados Unidos (TLC)». Seguindo a estratégia mediática do medo que
funcionou no México ao difundir massivamente «López Obrador é um perigo
para o México», também lançaram um intenso bombardeio mediático afirmando
que Daniel Ortega era «um perigo para a Nicarágua». Mas a experiência é a
fonte da sabedoria, e então esta estratégia foi eficazmente combatida por
Daniel Ortega e o FSLN.
A eleição em 2001 foi injusta pela utilização desproporcionada dos recursos e
os apoios indevidos do governo de Alemán a favor do candidato oficial, Enrique
Bolaños. Os comícios de 2006 foram também injustos pela intervenção na
altura de Bolaños a favor do candidato oficial, Eduardo Montealegre, e o apoio
aberto do imperialismo norte-americano. Por esta razão, mais agora do que no
passado, a eleição apareceu diante de todos como a confrontação entre uma
oligarquia neoliberal sem escrúpulos e um povo que quer deter o desastre
nacional e já não admite ser manipulado. Para os sectores maioritários da
cidadania nicaraguense, tratava-se de optar por um candidato que se
comprometera a impulsionar políticas sociais como combate contra a pobreza,
multiplicar fontes de trabalho que atenuem o êxodo laboral para os Estados
Unidos, Costa Rica, El Salvador e outros países da região da América Central,
distribuir a riqueza com maior equidade, já que actualmente 10% dos
nicaraguenses detêm 40.7% da riqueza e 82% da população vive na pobreza.
Tratava-se do seguinte: ou a Nicarágua continuava sob a dominação da direita
neoliberal ou se orientava para a mudança progressista.
Nesse sentido, do mesmo modo que a oligarquia local, o poder multinacional e
o imperialismo concentravam em cada caso todo o seu poder para manter a
sua exploração e domínio sobre o povo da Nicarágua, o FSLN levou a cabo um
prolongado e disciplinado exercício de concentração de forças. Todos os
recursos materiais e humanos disponíveis através das posições conseguidas
se puseram ao serviço dessa estratégia de construção de poder dual até
recuperar a presidência.
A partir de uma perspectiva mais ampla, com vários anos pelo meio, de
avanços sustidos e finalmente acompanhada do processo eleitoral presidencial,
a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) soube instrumentar uma
estratégia prolongada e por etapas de construção de poder dual, que culminou
com o seu regresso à presidência da Nicarágua. Assim o FSLN ocupou
progressivamente, pela via eleitoral, o poder na maioria dos municípios e
departamentos e se constituiu na força maioritária no Congresso. A partir
destes avanços fundamentais e mediante uma adequada política de alianças,
conseguiu-se concretizar um conjunto de reformas que levaram à vitória sob as
próprias regras do Estado capitalista.
Por outro lado, para o triunfo de Daniel foi muito importante a solidariedade
internacional das forças de esquerda. Pela primeira vez conseguimos
contrabalançar a direita no emprego deste factor tradicionalmente decisivo. Por
sua vez, as novas condições da região favoreceram o triunfo: as derrotas
recentes infligidas ao domínio capitalista, como a derrocada da ALCA, os
desacordos na OMA que contribuíram para o G-20, os avanços do
MERCOSUR, a posição soberana da Argentina perante o FMI, etc.; governos
de esquerda e centro-esquerda em vários países; e a opção de estabelecer
boas relações comerciais, financeiras e energéticas fora das imposições
neocolonialistas do imperialismo e do neoliberalismo.
Passado o momento da vitória, fica o projecto e o exercício de governo por
realizar. Primeiro vem o difícil e incerto processo proposto por Daniel de
reconciliação nacional, que em virtude do desastre gerado pelos governos
oligárquico-neoliberais, teria de representar a recuperação da Nicarágua para
os nicaraguenses. Recuperar a pátria, a nação, a soberania, os recursos, a
economia e a «divida nacional», ou seja, a recuperação do nível de vida das
classes trabalhadoras e os sectores populares. Paralelamente, a reconstituição
da República ou no seu caso um processo de reformas profundas para dar
viabilidade à consolidação do poder nacional-popular do FSLN. No seu
conjunto, estes dois eixos constituiriam um programa integral anti-neoliberal
que permitiria assentar as bases para um projecto nacional de maiores
dimensões.
Quanto a linhas específicas, por exemplo, promover com o exterior regras de
comércio que sejam justas; liberar recursos públicos suficientes através da
reestruturação da elevada dívida externa; potenciar a educação e melhorar o
capital humano; elevar a competitividade e aumentar o investimento nacional e
estrangeiro, mas não com base em salários baixos nem «venda de garagem»
do país.
O Presidente Ortega não tem a maioria absoluta no Congresso. Esta
correlação de forças condiciona as possibilidades de criar um programa
alternativo ao neoliberalismo e cumprir as expectativas das classes
trabalhadoras e os sectores populares maioritários do país. Mas essa foi a
proposta e esse é o compromisso que o presidente Daniel Ortega assumiu,
para bem do povo da Nicarágua.
Conclusões
Nos últimos dez anos, os triunfos eleitorais das esquerdas e centro-esquerdas
têm sido resultado de longos processos de acumulação de forças favorável às
causas populares, a soberania e os interesses nacionais, no contexto do
esgotamento do neoliberalismo e das suas modalidades estatais específicas.
Com diversos graus de avanço e compromisso, e sob a forma de novos
Processos Constituintes ou só de Programas Anti-neoliberais de fundo, aí
estão, entre outros, os processos da Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua,
Brasil, Uruguai, El Salvador, República Dominicana, Guatemala, e continuamos
a lutar para que em breve o México entre nesta lista.
Num sentido geral pode dizer-se que as esquerdas e as centro-esquerdas
governam maioritariamente na região da América Latina e da América Central.
Na difícil e complexa mudança de estratégia das armas às urnas, a luta
prolongada e por etapas e o processo de construção do poder dual, estão a dar
frutos. Mas não podemos «tocar os sinos», nem confiarmos em que o processo
seguirá o seu curso «automaticamente». Faltam muitas batalhas numa guerra
ainda desigual contra as oligarquias locais, o capital internacional e o
imperialismo. A seguir será a batalha pelo Equador, que de certeza ganhará o
povo salvadorenho e a esquerda se for utilizada a estratégia adequada.
Em conclusão do que aqui apresentámos, só queremos finalizar com as
seguintes considerações:
O acesso ao poder por parte dos partidos, organizações e movimentos de
esquerda e centro-esquerda, não tem de necessariamente significar
administrar o estado do capital a favor do capital, mas sim aproveitar os
recursos que dá o aparelho de Estado para mudar as condições imperantes.
Nesse sentido, na nossa opinião poderiam apresentar-se algumas das
questões seguintes:
Em primeiro lugar, os governos de esquerda e centro-esquerda têm o
compromisso imediato e permanente de melhorar as condições materiais da
vida do povo. Depois de séculos de dominação colonial, oligárquica e
imperialista, e mais ainda com o desastre e a depredação que o neoliberalismo
lançou sobre o mundo e especialmente sobre a América Latina e a América
Central, não parecem válidos os argumentos de priorizar a estabilização e a
geração de condições favoráveis ao investimento de capital interno e externo
para o «crescimento», à custa de prolongar a entrega dos recursos nacionais e
a situação de pobreza e miséria das classes trabalhadoras e os sectores
populares maioritários. Por estas circunstâncias os povos da região recusaram
cada vez mais o modelo neoliberal e o Estado neoliberal que o apoia, e fizeram
uma viragem à esquerda apoiando propostas de soberania nacional,
crescimento económico distributivo e desenvolvimento social inclusivo.
Nesta direcção, é necessário fortalecer as capacidades distributivas e
reguladoras do Estado. Passar o mais depressa possível do Estado neoliberal
ao Estado social, com os seguintes eixos fundamentais:
1. Defender soberanamente o aparelho produtivo nacional dos embates da
oligarquia local associada ao capital internacional, como garantia do sustento
da população e do exercício irrestrito do direito ao trabalho.
2. Promover o crescimento económico com empregos dignamente remunerados,
favorecendo a recuperação do investimento produtivo e combatendo a
especulação financeira. A recuperação dos investimentos não é só um assunto
de justiça social; do ponto de vista do padrão de crescimento é vital para a
reorientação do funcionamento da economia imposto pelo neoliberalismo. Sem
uma recuperação do investimento produtivo, além da continuação do
desemprego, será impossível aspirar a uma inserção benéfica na economia
global e menos ainda superar a dependência tecnológica e financeira, que
costumam seguir juntas.
3. Prover os serviços vitais como alimentação, saúde, educação e habitação aos
sectores de menor receita. A superação da fome não será possível com
programas paternalistas de caridade que procuram manter o povo submetido
moral e animicamente, é necessário produzir bens e serviços que a população
necessita e assignar os recursos produtivos e o financiamento com essa
prioridade.
4. Continuar o processo de acumulação de forças, consolidá-lo e estendê-lo a
toda a América Latina, à América Central e a outras regiões do mundo, para
conseguir a mudança da ordem imperante. Nesse sentido, é fundamental
desenvolver horizontal e verticalmente a democracia participativa em todos os
âmbitos da convivência social, entendida como regime político e social em que
as maiorias participam directamente e decidem sobre as matérias.
5. Nesse sentido há que considerar que uma das fontes de acumulação de capital
e privilégios mais eficazes e destrutivas do capitalismo neoliberal é a
impunidade e a colusão entre grupos de interesses, e destes com o poder
público. É, portanto, necessário consolidar a legalidade e a justiça sociais,
pondo freio à impunidade e ao abuso de poder, promovendo a transparência
não só do Estado como de toda a sociedade. A prestação de contas deve ser
um valor cívico e moral que regule as relações entre o poder do Estado e a
sociedade.
6. É necessário, mesmo assim, recuperar a cidadania de vastos sectores da
população que têm sido marginalizados e degradados por razões de raça,
classe social ou género o que implica a inalienabilidade dos seus direitos
cívicos e humanos.
7. Promover o desenvolvimento da consciência nacional através de uma
educação libertadora que contribua para que o povo compreenda os factores
que explicam a sua situação de exploração, submissão e dominação, e que lhe
permita assumir a necessidade de lutar por uma nova e melhor ordem
económica, social, política e cultural.
8. Promover, afiançar e fortalecer a unidade latino-americana e dos povos
oprimidos do mundo pela defesa da soberania nacional e contra os desejos
expansionistas e de posse directa das suas riquezas pela «santa aliança» das
oligarquias locais, o capital internacional e o imperialismo. Por isso é
indispensável combater com firmeza as privatizações e o pagamento da dívida
externa, que foram constituídas a favor do capital internacional e à custa do
povo e do desenvolvimento económico.
Nesta nova etapa histórica da deslocação da correlação de forças a favor dos
povos e das esquerdas da América Latina, da América Central e de outras
partes do mundo, tem-se vindo a criar as condições para desenvolver
processos de Reformulação da República. O esgotamento do neoliberalismo, o
desgaste das instituições estatais dominadas pelas direitas e o desastre
económico e social que provocaram na nossa região, geraram amplos e
vigorosos movimentos sociais juntamente com a reorientação das maiorias
populares para posições anti-neoliberais.
Isso chegou a constituir bases formidáveis de massas já que não só é possível
mas necessário, de acordo com as condições específicas de cada país,
impulsionar processos populares de Reformulação da República, seguindo
itinerários para que em termos gerais há alguns precedentes. Nesta
perspectiva e com o apoio de massas convocar um referendo para o
desaparecimento dos poderes e a eleição de um novo Congresso ou
Assembleia Constituinte, que elabore a nova Constituição e as leis secundárias
essenciais, as quais seriam submetidas à sua aprovação pelos cidadãos. A
função primordial destas medidas consiste em abrir o caminho e estabelecer o
novo marco institucional que permita desenvolver um programa radical de
reformas económicas e sociais, com base na democracia participativa em
benefício imediato das classes trabalhadoras, os sectores populares e as
classes médias, ou seja, a maioria da população nacional; e retomar a
soberania nacional para impulsionar o desenvolvimento económico distributivo
e uma nova inserção muito mais favorável na economia regional e mundial.
Ao contrário de outros processos históricos que levaram a cabo revoluções
armadas para instrumentar processos constituintes, as condições que se têm
vindo agora a apresentar dão às esquerdas da região a possibilidade de
impulsionar e concluir processos de Reformulação da República, ou seja,
novos Processos Constituintes, pela via das urnas com apoios de massas sem
precedentes. Estão a apresentar-nos condições para concretizar novos
projectos nacionais de esquerdas, com base na soberania popular e na
democracia participativa.
Se não assumirmos o desafio e o concretizarmos, corremos o risco de ficarmos
perante uma simples administração do neoliberalismo e dos seus Estados (com
alguns ingredientes meramente simbólicos de keynesianismo) por parte das
esquerdas.
Se os governos de esquerda e de centro-esquerda que estão a levar a cabo
novos Processos Constituintes, ou os que se situaram em projectos de
reformas anti-neoliberais profundas, não contribuírem para melhorar as
condições de vida da população, debilitar os mecanismos de dominação do
capital e do imperialismo, e acumular forças no campo popular para avançar
para uma nova ordem nacional e internacional socialista, não parecem ter
muito sentido e pelo contrário podem contribuir para o desencanto, a
desmoralização, a recusa e a derrota das esquerdas nesta nova fase da
correlação de forças que se está a deslocar a nosso favor.
Cidade do México, 8 de Março de 2008.
Senador, Partido do Trabalho (México)
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