Eleição de Obama pode despertar os EUA a questões políticas, diz professor

Eleição de Obama pode despertar os EUA a questões políticas, diz professor


ÉBANO PIACENTINI
Colaboração para a Folha Online

Décadas após os movimentos civis desencadeados pela eleição do presidente John F. Kennedy (1961-1963) e pelo líder afro-americano Martin Luther King --cuja morte fez 40 anos em 4 de abril-- uma eventual vitória do pré-candidato democrata Barack Obama nas eleições gerais de 4 de novembro pode desencadear um movimento sem precedentes na sociedade civil norte-americana, na opinião do professor de Harvard e ativista político Marshall Ganz.

"Eu acho que cerca de 40 anos após os assassinatos de [Martin Luther] King e de [John F.] Kennedy, que deixaram o país na escuridão, temos uma nova oportunidade," disse Ganz, que leciona em Harvard e faz pesquisas sobre liderança, organização e estratégia em movimentos e associações civis e políticas, em entrevista por telefone à Folha Online.

Reuters
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O especialista diz acreditar que a eleição de Obama seria uma "oportunidade para a sociedade americana voltar a ser protagonista de mudanças expressivas nos rumos do país".

"Quando John F. Kennedy foi eleito presidente, ele não teve a iniciativa de promover os direitos civis. Mas o fato de ele ser o presidente encorajou os líderes dos movimentos de direitos civis a mobilizarem suas bases. Eu acredito que o momento atual é o de aproveitar a oportunidade que a candidatura de Obama apresenta", diz o professor, que é PHD em sociologia por Harvard e antes de se tornar acadêmico, nas décadas de 1960 e 70, foi um ativista em sindicatos, organizações políticas, comunitárias e de direitos civis.

Para o analista, o tipo de liderança política que o senador Obama oferece ao país já foi experimentada de forma semelhante em outros momentos. "Nós a vimos em [Abraham] Lincoln, em [Franklin] Roosevelt (1933-1945) e em [Ronald] Reagan (1981-1989). Estes presidentes perceberam que mover a política em uma direção diferente significaria mexer com as tradições, valores e fontes morais mais profundos na cultura política deste país".

Leia a íntegra da entrevista concedida por Ganz à Folha Online:

Folha Online - Analistas vêem o momento atual como uma época em que as questões econômicas se sobrepõem às questões políticas. Para eles, Obama tem boas chances de ganhar as eleições, mas quando estiver na Casa Branca, terá dificuldades para mudar a agenda econômica e as políticas relativas à guerra. Até onde podem ir as mudanças?

Marshall Ganz - É justo dizer que será muito difícil mudar as coisas. Obama reconhece isso. Se você prestar atenção no que ele fala sobre promover a união entre as pessoas, ele é muito pontual na realidade que pode trazer uma maioria política, para promover verdadeiras mudanças. Isso significa ter força no Senado, na Câmara dos Representantes (deputados) e suficiente apoio da população para que o presidente se torne de fato um agente de mudança. Isso não ocorre apenas porque você é eleito presidente. Ter o cargo não garante que você irá mudar a direção de tudo. Então, boa parte da campanha é direcionada a costurar uma coalizão que vá servir como apoio após as eleições. Torna-se uma questão imperativa o que se pode atingir com isso. O outro lado é que o momento também é um convite a nós que compartilhamos as mesmas preocupações com a política americana e reconhecer a oportunidade que a campanha de Obama está oferecendo. Não se pode esperar que ele faça tudo, temos que participar. Quando John F. Kennedy foi eleito presidente, ele não teve a iniciativa de promover os direitos civis. Mas o fato de ele ser presidente encorajou os líderes do movimento de direitos civis a mobilizarem suas bases. Eu acredito que o momento é de aproveitar a oportunidade que a candidatura de Obama apresenta, mais do que esperar que por mágica ele seja capaz de sozinho mudar a direção da política americana.

Folha Online - Você acredita que a sociedade civil americana está pronta a ser uma força protagonista desta mudança?

Ganz - Isso nós iremos descobrir, certo? O que é mais empolgante na campanha é a sensação de movimento e mudança, especialmente entre os jovens. E para muita gente que esteve fora por anos isso é como uma segunda primavera. Nós seremos capazes de aproveitar essa oportunidade? Não sei. Tenho esperanças que sim.

Folha Online - Obama freqüentemente faz longos discursos em que evoca líderes e momentos da história política americana. Em quais presidentes ele se inspira?

Ganz - O tipo de liderança política que Obama oferece ao país já foi visto em certas ocasiões. Nós a vimos em [Abraham] Lincoln (1861-1865), em [Franklin] Roosevelt e em [Ronald] Reagan. Estes presidentes perceberam que mover a política em uma direção diferente significaria mexer com as tradições e os valores morais mais profundas na cultura política deste país. Existem ao menos dois tipos de cultura política nos EUA: um é muito mais sobre inclusão, generosidade, comunidade, interdependência e solidariedade. São os valores do arcabouço de Roosevelt com o "New Deal" e o movimento dos direitos civis. A outra tradição é muito mais individualista, para não dizer intolerante.

Folha Online - Esta seria a tradição republicana?

Ganz - Exatamente. Eu a associo a [Ronald] Reagan. O senador Obama reconhece que há estes dois pilares na política americana. Quando Bill Clinton (1993-2000) se tornou presidente, ele nunca desafiou isso, apenas se ajustou ao que já estava lá. O que Obama está tentando fazer era revitalizar os valores que formam a tradição mais generosa e inclusiva. Para fazer isso, é preciso ir a fundo nas bases morais da cultura [política] e é isso que ele está mostrando ser capaz de fazer. É por isso que os jovens estão tão inspirados e entusiasmados. Por isso que é a política da esperança e da possibilidade, e não sobre manter as coisas como estão. Na última edição da "New York Review of Books", Guerry Wills escreve um artigo muito interessante comparando o discurso de Obama sobre a questão racial ao discurso de Lincoln sobre o mesmo tema quando concorreu à Presidência, em 1860.

Folha Online - Obama pode ter pesquisado estas referências históricas?

Ganz - Ele é um verdadeiro estudioso de Lincoln, que também é de Illinois [Estado por onde Obama é senador]. Lincoln foi um dos arquitetos mais importantes dos documentos que fundamentam o princípio da igualdade americana, e também teve uma aproximação com a religião e com as igrejas negras, que têm uma ampla e articulada tradição de discursos. A ligação entre Lincoln e Obama é muito importante.

Folha Online - Algum dos presidentes a que você se referiu exerce claramente maior influência sobre Obama?

Ganz - Parece estranho dizer que o senador Obama se parece mais com Reagan do que com Bill Clinton, mas isso é verdadeiro no sentido de que Obama compreende como Reagan foi capaz de transformar a política americana. Ele também tem grande afinidade com os Kennedy, especialmente Robert Kennedy [irmão do ex-presidente John F. Kennedy]. Há algo a respeito da liderança em que se consegue enxergar o lado negro e ver a esperança e trazê-los juntos de uma forma realística e positiva. É típico de pessoas bem sucedidas esse tipo de liderança. É uma espécie de percepção de que o mundo é um lugar de sofrimento, mas também de possibilidade, e quando se consegue juntar essas duas coisas se torna uma verdadeira arte. [Robert] Bobby Kennedy foi capaz de fazer isso por sua experiência de vida.

Folha Online - Robert Kennedy era jovem e também trouxe à tona a discussão racial...

Ganz - Absolutamente. E o discurso que ele fez na noite em que King foi assassinado, para aquela multidão em Indianápolis, Indiana, é um dos mais memoráveis momentos da histórica da política americana. Neste discurso, Bobby dá a notícia ao público negro americano de que King tinha sido assassinado, fazendo reflexões e comparando ao assassinato de seu irmão [John F. Kennedy]. É um momento incrível.

Folha Online - Por que esse discurso foi tão memorável?

Ganz - Pela forma como ele conseguiu passar à comunidade negra um entendimento pacífico, em um momento de grande perda. Recomendo aos leitores do jornal procurar no site You Tube o vídeo do discurso.

Veja o discurso de Robert Kennedy sobre o assassinato de Martin Luther King no YouTube

Folha Online - Barack Obama foi um líder comunitário em Chicago. Em que medida esta experiência contribuiu para a sua formação política?

Ganz - As comunidades de cidades como Chicago se organizam coletivamente para fazer pressão em empresas, no governo, com promotores de políticas públicas e todos que possuem um poder que afeta sua vida. Durante três anos, Obama desenvolveu essa habilidade de organizar comunidades em Chicago.

Folha Online - Muito se fala sobre a habilidade de discursar de Obama, mas fala-se também de sua pouca experiência política. O senhor o considera preparado para a Casa Branca?

Ganz - Muito da organização de comunidades neste país é baseado em igrejas, que também são comprometidas com uma agenda social. O trabalho de Obama no passado também está ligado às igrejas, assim como aos sindicatos e associações civis. Esta é uma bagagem bastante sólida no mundo real, em problemas que as pessoas enfrentam todos os dias. Obama aprendeu como resolvê-los. Ele aprendeu a ter paciência e a ser criativo com tudo isso. Também aprendeu uma coisa que cativa as pessoas: correr riscos para melhorar sua condição de vida. Isso não caracteriza uma aproximação por caridade para cuidar das pessoas pobres. É um apelo muito mais político, pois propõe um trabalho em conjunto com as pessoas para que elas possam trabalhar juntas e encontrar as formas de mudar as circunstâncias. Por isso é um apelo mais ativista e político do que uma forma de caridade.

Folha Online - O senhor também já foi um líder civil antes de se tornar um acadêmico. O que chama sua atenção em termos de mobilização civil nestas eleições?

Ganz - Minha experiência de vida anterior à academia foi de um organizador do movimento de direitos civis e em campanhas políticas. Como acadêmico, meus estudos são sobre liderança e movimentos sociais organizados e mudanças sociais. Uma das coisas que observo na política americana é que mudanças profundas raramente nascem em leis sem uma base social forte. As leis mais representativas emergem de movimentos sociais, como os movimentos de direitos civis que envolvem a comunidade em preocupações de ordem moral e terminam por influenciar o sistema político e as corridas eleitorais. Há um movimento não- dimensionado nesta campanha, que torna mais difícil para as pessoas entenderem o que está acontecendo. Há um filósofo judeu que afirma que a esperança é acreditar na plausibilidade do possível em oposição à necessidade do provável. O que estamos vendo neste ano não é a política do provável, mas a política do possível. Surpresas ocorrem todos os dias. Eu acho que, cerca de 40 anos após os assassinatos de [Martin Luther] King e [John F.] Kennedy, que deixaram o país na escuridão, fomos agora abençoados com uma oportunidade de retomar as coisas do ponto em que havíamos parado. Vamos ver se isso vai mesmo acontecer.

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