Entrevista Loïc Wacquant | ||
A criminalização da pobreza | ||
Esta entrevista, concedida por Loïc Wacquant a Cécile Prieur e Marie-Pierre Subtil em 29 de novembro de 1999, por ocasião do lançamento de seu livro na França, foi parcialmente publicada pelo Le Monde e é agora traduzida e divulgada pela primeira vez na íntegra por MaisHumana, mediante autorização do entrevistado. Tradução de Suely Gomes Costa*
Conduzindo uma investigação etnográfica junto ao gueto negro de Chicago, dei-me conta do quanto a instituição penitenciária banalizou-se, com toda a sua onipresença, na base da estrutura social dos Estados Unidos. A maior parte dos jovens do bairro pesquisado tinha já experimentado a detenção. Quando um deles desapareceu, a suposição natural foi a de que estava metido atrás das grades; este fato, porém, não chocava ninguém! Quando Clinton aboliu a ajuda social em 1996 substituindo-a por um programa de trabalhos forçados, ficou claro que o desmantelamento da pequena rede de proteção social e o desdobramento concomitante da policial e penal, também pequena, mas numa malha cada vez mais intrincada, respondiam a um mesmo objetivo: criminalizar a pobreza a fim de apoiar o novo regime do assalariamento precário e mal pago. A transição do Estado Providência para o Estado-Penitência não diz respeito, porém, a todos os americanos: ela se destina aos miseráveis, aos inúteis e aos insubordinados à ordem econômica e étnica que se segue ao abandono do compromisso fordista-keynesiano e à crise do gueto. Volta-se para aqueles que compõem o sub-proletariado negro das grandes cidades, as frações desqualificadas da classe operária, aos que recusam o trabalho mal remunerado e se voltam para a economia informal da rua, cujo carro-chefe é o tráfico de drogas. Como a política penal e carcerária dos Estados Unidos evoluiu durante este período? Logo em seguida aos motins de Ática, há vinte e cinco anos, o debate sobre o sistema penal dos Estados Unidos irá girar em torno da "des-carcerização" e das penas substitutivas. O número de reclusos havia diminuído; um relatório oficial enviado a Nixon preconizava a contenção das iniciativas de construção de prisões e a abolição da detenção dos menores de idade. Dez anos mais tarde, contra todas as expectativas, a população carcerária aumentou de 380.000 para 780.000 detentos, dobrando novamente até atingir 1,5 milhões em 1995. Hoje, essa marca se aproxima de dois milhões, dos quais um milhão de condenados é por infrações não-violentas, e ninguém sabe como travar essa máquina infernal de aprisionar. Com 700 detentos por 100.000 habitantes - ou seja, seis a doze vezes mais que nos países europeus - os Estados Unidos ocupam o segundo lugar no número de encarceramentos no mundo, logo depois da Rússia. É o que se chama de "extensão vertical" do sistema. Trata-se de algo sem precedente histórico, num período em que a criminalidade não muda de escala. A isso se acrescenta a "extensão horizontal" do sistema penal, uma vez que populações nas mãos da justiça extra muros (condenadas a penas com sursis ou sob liberdade condicional) têm aumentado rapidamente e composto abundantemente os bancos de dados criminais, tantos deles acessíveis através da internet. No total, atualmente há seis milhões de americanos sob tutela penal, ou seja, 5% da população adulta, mas também um homem negro em dez ou um jovem negro de 18 a 35 anos em cada três. Para desenvolver tal Estado penal superdimensionado, foram necessárias duas vias: a América iria comprimir as despesas públicas destinadas às questões sanitária, social e educativa, e paralelamente, inchar a quantidade de pessoas e de créditos destinada aos sistemas policial e penitenciário. Nos períodos Reagan e Bush, o item "prisão" aumentaria três vezes mais rápido que o orçamento militar! Quando Clinton chegou ao poder, a administração penitenciária do país atingiu a marca de terceiro maior empregador do país com 600.000 assalariados. Entretanto, mesmo fazendo cortes nos orçamentos de ajuda social, a quadruplicação dos efetivos carcerários, em vinte anos, não teria sido possível sem o surgimento do setor privado: o aprisionamento com fins lucrativos reaparecerá a partir de 1983, açambarcando, rapidamente, a décima segunda parte do "mercado" nacional, ou seja, cerca de 150.000 detentos, três vezes a população penitenciária da França. Tais empresas, cotadas em bolsa de valores, propalam taxas recordes de crescimento e de lucro. A "nova economia" americana, não é apenas a da internet e a das tecnologias de informação: é também, a que industrializa o castigo. A título de ilustração, vale lembrar que as prisões do Estado da Califórnia empregam duas vezes mais pessoas do que a Microsoft... Como os poderes públicos têm justificado essa brusca mudança de rumo? A política securitária dita da "lei e da ordem" desenvolvida nesse período é, primeiramente, uma réplica aos movimentos sociais dos anos sessenta, notadamente, aos avanços do movimento negro. A direita americana se lança, então, a um vasto projeto de rearmamento intelectual, criando celeiros-de-idéias, esses institutos de aconselhamento em matéria de políticas públicas, rampas de lançamento ideológico da guerra contra o Estado - Providência. Uma vez ganha a batalha contra o setor assistencial do Estado, esses mesmos institutos vão se dedicar à promoção do seu setor repressivo: ao "Estado mínimo" social e econômico sucede o tema do "Estado máximo" policial e penal, tornado caudatário da matéria "justiça".Por exemplo, em Nova York, é o Manhattan Institute que ressuscita e promove a teoria dita da "vidraça quebrada" (portanto, cientificamente desacreditada) a fim de legitimar a política de 'tolerância zero" do prefeito republicano Giuliano. Esta política permite efetuar uma "limpeza de classe" no espaço público, afastando os pobres ameaçadores à ordem ( ou percebidos como tais) das ruas, dos parques, dos trens, etc. Para aplicá-la, o Chefe de polícia transformou sua administração em verdadeira "empresa de segurança" com a contratação de 12.000 agentes a mais, atingindo um total de 48.000 empregados, cifra esta que vale comparar com a dos 13.000 empregados dos serviços sociais da cidade depois do corte de 30%. A seu ver, existe uma ligação direta entre o desenvolvimento do neo-liberalismo e a organização da sociedade penal? Não é uma mera coincidência que a Grã-Bretanha exponha ao mesmo tempo o seu mercado de trabalho como o mais desregulado, o crescimento de sua população carcerária como a mais intensa dentre os grandes países da Europa (+50% em 5 anos) e a privatização do sistema penitenciário como a mais avançada. Em primeiro lugar, um Estado penal forte parece contraditório em relação ao enfraquecimento do Estado pregado pelo neo-liberalismo; mas, na realidade, "liberalização" da economia e organização penal da sociedade pela precariedade estão lado a lado, uma reforçando a outra. Tanto é assim que, bem debaixo de nossos olhos, se inventa uma nova forma política, um Estado-centauro que eu chamo de 'liberal-paternalista": de um lado, ele é liberal numa tendência ascendente, porque pratica a doutrina do "laissez-faire" ao nível dos mecanismos geradores das desigualdades sociais; de outro lado, ele é paternalista e punitivo quando trata de gerar com aval as suas conseqüências, notadamente, nos bairros pobres açoitados pela des-regulação do mercado de trabalho e pelo recuo da proteção social. A seu ver, a oscilação do Estado social em direção ao Estado penal e a teoria da tolerância zero se difundem na Europa. Que elementos lhe permitem ser tão afirmativo a esse respeito? Quase todos os países da Europa experimentam um forte crescimento da população carcerária saída daquela dominantemente formada por desempregados, carentes e estrangeiros, simultaneamente acompanhado de um claro endurecimento das políticas penais, mais abertamente voltadas para a "defesa social" em detrimento das de reinserção social, e ainda uma generalização do recurso ao penal com vista a debelar os efeitos da alta da inseguridade salarial. Não apenas os dispositivos da assistência aos mais desprotegidos se recompõem segundo uma lógica do panóptico e punitiva (por exemplo, a supressão do RMI ou dos abonos familiares para os pais de crianças delinqüentes multi-reincidentes ou a conexão dos fichários sociais, fiscais e policiais). Por toda a parte, difunde-se um discurso "anti-crime", rígido e simplista de uma outra época, que se nos apresenta flexível e novo apenas pelo fato de que vem da América, e sobretudo, de Nova York, Meca da religião securitária. Na França, a "seguridade" foi promovida à prioridade governamental, mas somente depois de ter sido previamente rebaixada à seguridade física (ou criminal), arbitrariamente separada da seguridade salarial, social, medical ou educativa. Mostro no meu livro esta temática como originária diretamente de institutos neoconservadores americanos que a exportaram para a Grã-Bretanha, posta a funcionar como um filtro de aclimatação da penalidade neoliberal para os países europeus; mostro, ainda, o modo pelo qual jornalistas, oficiais e universitários concorrem para espalhá-la por todo o continente. Paradoxalmente, os governos de esquerda demandam a organização penal mais que os governos de direita, porque convertidos à visão neoliberal em matéria econômica e social, acabam se colocando em situação de déficit de legitimidade. Reafirma-se o direito à "seguridade" com muito mais vigor quando se é incapaz de assegurar o direito ao trabalho, uma vez que, nesse domínio, pede-se que sejamos resignados diante do "Estado que não pode fazer tudo" ... De resto, a violência nos bairros, sobretudo a violência dos jovens, aumentou nesses últimos anos ... É preciso, primeiro, reduzir seriamente hoje o tom dos discursos de pânico ouvidos por aí sobre esse assunto, colocando-se a questão de saber de onde vem essa violência. Principalmente porque a mídia, mas também a polícia, a escola, os transportes, etc, estão muito mais atentos a esses fenômenos e a delinqüência tornou-se, por todas as formas de intervenção, uma mercadoria que paga. Os jovens de subúrbios em ascensão econômica demandam acesso à cidadania econômica e social. Diante da incapacidade de atendimento as suas necessidades, os mesmos são tratados pelo viés policial e penal e criminalizados em suas ações, principalmente, pela perspectiva baseada na noção (verdadeira-falsa) de "violências urbanas", que é um non-sense sociológico e estatístico, e que guia, entretanto, a retórica e a ação do governo atual... As políticas de tratamento voltadas para a delinqüência, tais como preconizadas pelo governo, têm alguma utilidade? Primeiro, fazer acreditar que se conseguirá o recuo da delinqüência - e pior ainda, das famosas "incivilidades" - através do aparelho policial e penal, é uma grande falácia. Isto porque em todos os países democráticos, apenas uma ínfima proporção de infrações cometidas é objeto de uma ação na justiça (nos Estados Unidos, apenas 4% dos ferimentos causados às pessoas são tratadas com sucesso pelo sistema judiciário). Para que esse sistema pudesse ter um impacto mínimo, seria necessário desenvolvê-lo em proporções inimagináveis. Segundo, recorrendo à banalização do recurso ao aparelho repressivo, diminui-se, por outro lado, seu efeito estigmatizante e dissuasivo; por isso, torna-se necessário aumentar, sem cessar, as doses desse recurso para obter um mesmo resultado. Enfim, a "policialização" dos bairros segregados pode mesmo alimentar a delinqüência, perpetrando uma cultura de resistência à autoridade. Quanto à prisão, ela ensina aos pequenos delinqüentes, sobretudo, a se tornarem melhores criminosos além de desestabilizar seriamente as famílias e as zonas pobres submetidas ao seu tropismo: é uma formidável fábrica de produção de uma precariedade sui generis. No fim das contas, o fracasso programado da gestão penal da miséria servirá de justificação... à sua extensão indefinida que o discurso inesgotável sobre a "responsabilidade individual" e a "reincidência" acabará por naturalizar. Mas, eis aí a dificuldade: a utilidade das políticas repressivas nem é criminal, nem é penal; ela é puramente eleitoral. Consiste em seduzir franjas autoritárias do eleitorado, reafirmando, no plano simbólico, o papel do Estado como fiador da ordem. Não é por acaso que a viragem securitária do governo Jospin acelerou-se subitamente em dezembro último, no momento em que a cisão do Front Nacional liberava uma palavra de ordem destinada a atrair... Existe uma alternativa a essa organização penal crescente? Sim, é o que nos mostram a sociologia comparada e a experiência de países vizinhos como a Alemanha, a Áustria ou a Finlândia. Mas para se aperceber, é preciso recusar a separação entre o econômico e o social, e entre o individual e o social, base do pensamento neoliberal. Partir dessa falsa dicotomia entre condutas individuais e causas sociais (que Lionel Jospin, numa recente entrevista ao Monde, rebaixaria ao nível das "desculpas sociológicas", termo fetiche usado pelos intelectuais forjados nos celeiros de idéias da nova direita anglo-americana) é se fechar num impasse no qual a direita é levada a uma escalada penal sem fim, tornada rapidamente a sua própria justificação. * Suely Gomes Costa é Doutora em História (UFF) e Pesquisadora do CNPq |
- Obter link
- X
- Outras aplicações
Mensagens populares
Assassinato de Golfinhos, mais uma desumanidade humana
- Obter link
- X
- Outras aplicações
Comentários