O nascimento do Homo planetaris
CARLOS NOBRE, JOSÉ MARENGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É COMUM ouvir de pessoas com mais de 50 anos, especialmente do Sul e Sudeste, a
observação de que não faz mais frio como antigamente. Essa percepção é correta. As
temperaturas estão subindo em todo país: já aumentaram de 0,6C a 0,7 C nos últimos 50 anos.
As temperaturas mínimas subiram quase 1C durante o mesmo período.
Há um menor número de noites muito frias. Tudo isso é principalmente conseqüência das
crescentes emissões de gases de efeito estufa por atividades humanas. A física que embasa o
efeito estufa da atmosfera terrestre é robusta e bem conhecida desde o final do século 19.
Torna-se até surpreendente notar que se levou tanto tempo para atingir-se o quase consenso
atual sobre a enorme gravidade disso.
O 4º relatório de avaliação sobre a base científica das mudanças climáticas (AR4), produzido
por centenas de cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, divulgado
ontem, não deixa dúvida de que a maior parte do aquecimento dos últimos 50 anos se deve
exatamente às emissões de gases-estufa por atividades humanas.
No entanto, a receptividade às conclusões deste quarto relatório na sociedade é muitíssimo
maior. Desde 1990, ano do primeiro relatório, o grau de ceticismo tem diminuído
notavelmente, talvez pela contundência das evidências apresentadas nos três relatórios já
publicados -mas também pelo melhor grau de entendimento de processos físicos e
especialmente devido à ocorrência de grandes extremos climáticos, como secas e enchentes.
No Brasil, temos enfrentado um grupo cada vez menor de céticos que falam que aquecimento
global é "bobagem", de que somos excessivamente alarmistas. Consolida-se na percepção da
sociedade o conceito de que mudanças climáticas são coisas do presente. Deve-se enfatizar
que não é mais possível reverter completamente o aumento do aquecimento global. Os gases
de efeito estufa em excesso continuarão aquecendo a baixa atmosfera e superfície terrestre por
séculos, muito provavelmente.
No tocante à redução das emissões, é indiscutível que nossa grande contribuição deve ser o
radical decréscimo dos desmatamentos amazônicos, para nos tirar da nada honrosa posição no
bloco de frente dos países que mais emitem gás carbônico por essa via.
A queda das taxas de desmatamento dos últimos dois anos traz no seu bojo a esperança -
esperança esta que inexistia até alguns anos atrás- de que é, sim, factível reduzir a derrubada
de florestas para valores próximos de zero, baseando o desenvolvimento sustentável da
Amazônia na recuperação de áreas degradadas.
Além disso, é preciso uma profunda transformação, talvez sem paralelo na história da
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civilização, uma evolução não biológica, mas filosófica e cultural, do Homo sapiens para algo
novo, que podemos chamar de Homo planetaris. Essa nova humanidade deve ser guiada pelo
conhecimento e pela ciência e ter respeito e solidariedade com os menos afortunados.

CARLOS A. NOBRE é pesquisador titular do Inpe, doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts,
EUA, presidente do Comitê Científico do Programa Internacional da Geosfera-Biosfera (IGBP) e membro do
Grupo de Trabalho 2 do IPCC
JOSÉ A. MARENGO é pesquisador titular do Inpe, doutor pela Universidade de Wisconsin, EUA, coordenador
do programa de mudanças climáticas do Inpe e membro do Grupo de Trabalho 1 do IPCC

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