Holanda desmente relatório da ONU sobre política de droga

Fernanda Câncio AP-Kirsty Wigglesworth

A agência que fiscaliza a proibição de drogas é acusada de "irresponsável" pelos seus críticos "A Holanda não mudou a sua política em relação à cannabis. Não estamos a fechar as coffee shops nem estamos especialmente preocupados com o consumo de cannabis no nosso país". Foi assim que o governo holandês reagiu à divulgação do relatório de 2004 do Órgão Internacional de Controle de Estupefacientes (OICE), cujos destaques incluem " uma mudança crucial e significativa" na política daquele país relativa à cannabis, que se consubstanciaria na redução do número de coffee shops (os estabelecimentos onde é permitida a venda de pequenas quantidades de haxixe e marijuana).

Esta alegada alteração, com a qual o OICE se "congratula" , causa mesmo o espanto do gabinete de imprensa do ministério da Saúde holandês, que disse ao DN "não saber onde o órgão foi buscar essa idéia". "Está tudo basicamente como antes, não mudamos nada. E comparando o consumo de cannabis entre os jovens holandeses com os dos nacionais de outros países europeus, constatamos que estamos a meio da tabela, o que significa que a nossa política não está a dar maus resultados".

Recorde-se que a Holanda é apontada como o exemplo mundial de uma política liberal no que respeita ao fenômeno das drogas por ter sido o primeiro país a consagrar a distinção entre drogas "duras", como a heroína, e "leves", como os derivados da cannabis. A decisão de "separar" os respectivos mercados através da existência das coffee shops tem-lhe valido a perpétua censura do OICE.

Esta instituição das Nações Unidas, à qual incumbe a fiscalização da aplicação das três Convenções que decretam a proibição de uma série de substâncias (as "drogas") a nível mundial, também não vê com bons olhos outras medidas de que a Holanda foi pioneira, como a troca de seringas (que visa evitar a transmissão de HIV-AIDS e outras infecções entre utilizadores de drogas injetáveis) e as salas de injeção assistida.

Apesar de refletir com preocupação o contributo das infecções entre utilizadores de drogas no alastrar da epidemia de Aids no mundo e de frisar que "os governos têm de encontrar meios de limitar a propagação do HIV", o OICE, pela voz do seu presidente, Hamid Ghodse, adverte "É preciso que as medidas para prevenir a propagação de doenças contagiosas não sejam vistas como destinadas a facilitar ou mesmo incentivar o abuso de drogas (...). O objetivo primeiro e preponderante de todas as intervenções tem de ser impedir o abuso de drogas."

Uma atitude que os críticos do OICE apelidam de "irresponsável" . É o caso do Conselho Senlis, uma organização internacional de "reflexão sobre política de drogas", que reagiu ao relatório considerando "inaceitável" que "medidas testadas que podem contribuir para combater a epidemia da sida e salvar vidas não recebam, no s€ ¦éculo XXI, um firme apoio legal internacional" . O Conselho Senlis, que culpa "a guerra perdida dos EUA contra a droga" pelas posições inamovíveis do OICE, chama ainda a atenção para o fato de outras agências das Nações Unidas, como a Onusida, defenderem as medidas que o OICE ataca. Também o Parlamento Europeu aprovou há dois meses um relatório que contradiz as posições do OICE.

farmácias globais. Outro dos destaques do relatório do OICE é a preocupação com a venda de produtos farmacêuticos através da internet, num negócio que reputa de "ilícito" e que comercializa "milhares de milhões de doses de medicamentos por ano". O OICE afirma que em 2004 a maioria dessas transações, não sujeitas a qualquer controle (nomeadamente quanto à idade dos compradores) , disse respeito a produtos contendo substâncias psicotrópicas.

O caso afegão é outra das dores de cabeça do OICE a proibição de produzir

ópio não surtiu efeito e o país "está dominado pelo tráfico".

'Viciados' em tranqüilizantes


"O consumo lícito de substâncias psicotrópicas em Portugal é o mais elevado de todos os países da Europa, à exceção da Irlanda, e as razões desse fenômeno não são conhecidas". Já conhecida, a tendência nacional para o abuso lícito e ilícito de tranqüilizantes é a uma das referências que o relatório de 2004 do Órgão Internacional de Controle de Estupefacientes faz ao País, que foi um dos escolhidos para uma visita fiscalizadora. Em causa estava averiguar dos efeitos da viragem na política relativa às drogas determinada pelo governo de Guterres, em 2001, como a descriminalização do consumo e a criação das Comissões de Dissuasão do Consumo de Drogas. Em relação a estas, uma originalidade portuguesa, o relatório limita-se a recomendar, com ironia talvez involuntária, que "funcionem como dissuasórias" De resto, o OICE congratula-se por a descriminalização "manter a proibição do consumo, compra e venda", e por Portugal ter, "como a Dinamarca, optado contra o estabelecimento de salas de injeção assistida". Ligeira correção nem o governo PS, que criou o quadro legal que as viabiliza, nem o PSD/PP assumiram uma "opção contra" as ditas salas, antes dizendo ser preciso "estudar o assunto".

Agência fala em campanha pró-'cannabis'


Cerca de 28,8 milhões de europeus (5,3% do total) usaram cannabis durante o último mês. A Europa é aliás responsável por cerca de 20% do consumo mundial desta substância, que entre as proibidas pelas três Convenções Internacionais da ONU é a mais popular a nível global. Um fato que, frisa o OICE, tem determinado, entre os europeus, o aumento dos pedidos de tratamento com ela relacionados 12% de todas as pessoas em tratamento e 25% dos que o iniciam citam-na como o seu problema principal. Situação que o órgão contrasta com o fato de "o debate público sobre a cannabis estar dominado mais pelos seus alegados benefícios potenciais que pelos seus riscos". Crendo estar, face à discussão sobre os usos terapêuticos da cannabis, perante uma "campanha" que atribui sobretudo a "alguns media", o OICE relembra que a cannabis está incluída nas listas I e IV da Convenção de 1961, que referem "as substâncias mais propensas a criar abuso e a produzir efeitos negativos". Por outro lado,
refere, se países como o Canadá, a Suíça, a Holanda e a Alemanha se dedicam desde o fim dos anos noventa a pesquisa científica sobre os tais efeitos terapêuticos, os resultados obtidos são "limitados". "Esperamos dados científicos a este respeito", diz o OICE. Que, no entanto, ao longo de 80 páginas de relatório , não cita qualquer estudo que prove os malefícios da substância.
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