O passarinho e o falcão

O passarinho e o falcão


Era uma vez um passarinho condenado desde o nascimento

À nunca deixar o ninho


Sua mãe zelosa ao extremo

Depois de ter o coração partido por um insensível gavião

Perdeu o gosto pela vida e passou à desconfiar do céu e da canção

E para preservar suas crias

Das garras cruéis do destino

Desencorajou-as à algum dia deixar o ninho

Mantendo-as sob vigilância cerrada debaixo de suas asas


À medida que iam crescendo e se tornando aves belas

Inventava-lhes a mãe histórias tenebrosas

Para que nunca arriscassem deixar o ninho

Para conhecer o mundo lá fora

E assim cresceram acreditando que o mundo inteirinho

Resumia-se ao seu ninho

E que tudo à sua volta era uma grande ilusão

Uma arapuca, uma prisão rodeada de gaviões

Loucos para despedaçar seus jovens e inocentes corações


Pobres passarinhos que o amor sufocante e precavido privou-os do ar!

Pássaros são seres especiais, nasceram para o céu

Nasceram para voar!


E quão prodigiosas eram suas crias!

De talento raro, pássaros de alma límpida

Mas acovardados desde a infância para a vida


E assim tudo ia seguindo sua rotina

Os pássaros crescidos sob as asas da mãe

Sedentos de curiosidade de experimentar o mundo

Mas temerosos demais para desapontar aquela que lhes trouxe à vida


Mas a natureza é velha e sábia

E na primavera, por instinto, lá estavam eles à bater suas asas

E ensaiar seus primeiros assobios...

E como eram afinados, e que asas emplumadas!

Ao mesmo tempo em que deles se orgulhava

A velha mãe ficava cada vez mais aflita e zangada com a situação

Estavam grandes, fortes, mal cabiam sob suas asas

De modo que redobrou suas ameaças

Insistindo que só seriam amados e protegidos

Enquanto estivessem sob sua guarda em seu ninho

E que qualquer arremedo de vôo, por mais tímido

Logo atrairia a atenção dos perversos gaviões

Acabando com toda a paz duramente conquistada

Nesses anos à fio

E suas vidas, à partir de então, seriam só dor e sofrimento


Divididos entre a sua natureza e os rogos da mãe

Resignaram-se à ver o mundo da janela, à assobiar baixinho sua canção

A voar livre só nos sonhos


Mas um dos passarinhos queria mais

Tinha em seu coração que Deus não faria um mundo tão grandioso

E que lhe daria asas e o gosto pela canção se não fosse para voar

E espalhar aos quatro ventos sua canção...

Mas como faria?


Noite e dia sua mãe mantinha-lhe sob vigia

Remoendo feito um mantra o seu passado

Como um legado fatídico às crias

Que ousassem do mundo provar nem que fosse só um dia.


Foi então que a engenhosa avezinha teve um plano:

E de noite enquanto sua mãe dormia um pesado sono

Saiu de fininho e foi cantar junto às águas dum lago sob o luar

E assim passou à fazer todas as noites de luar

Só voltando de manhãzinha

Pouco antes do sol raiar


A mãe coitada, nem desconfiava

Pensara que a cria amansara com o tempo

E aceitara aquela vida no ninho sem mais questionar


E como foi ficando belo seu canto!

A noite silenciosa se enfeitava com sua canção

Adoçando os corações das criaturas da noite


E assim o tempo foi passando

Até que numa noite, um falcão que por aquelas bandas resolveu pernoitar

Ouviu ao longe aquela linda canção


Nunca na vida o falcão tinha ouvido algo tão belo

E seu coração cobriu-se de amor no mesmo instante

E seguindo o rastro de som daquela música radiante

A ave do sol foi ter com a lua naquele lago de verão


Quando o passarinho deu por si, o falcão estava bem diante dos seus olhos

E seu coração congelou por um instante


Lembrou das recomendações todas da mãe

Dos perigos do mundo aqui fora

E como não conhecia a diferença entre os rapinantes

Tomou o falcão por um gavião

E viu cumprir-se diante de si seu trágico destino


O falcão percebendo o terror que causara no passarinho

Abrandou seus olhos e muito gentilmente disse ao seu ouvido:

- Não tenha medo! Não vim lhe fazer mal algum! Canta nobre passarinho!

- Canta, que sua canção cobriu de amor meu coração!


Nunca na vida lhe pediram para cantar, antes lhe reprimiram como sempre o fez a mãe e agora, aquele que era o algoz, o terror de suas histórias, ali estava pedindo-lhe juntamente para fazer o que mais gostava?


Confusa e assustada, não sabia se fugia ou se cantava... Mas queria cantar, o prazer de sua vida era cantar! Então juntou toda a coragem que tinha e cantou sua melodia!


- Bravo! – vibrava o falcão – Que coisa mais linda! Cante, cante mais, cante até raiar o dia!


E assim, todas as noites vinha o falcão à beira do lago ouvir sua canção...

E passou o falcão à lhe ensinar à voar cada vez mais alto e veloz

E nossa ave heroína foi criando confiança em suas asas

Tão mitigadas por anos de repressão

E o amor foi crescendo em seus corações de maneira natural e espontânea

e criando profundas e sólidas raízes

E sem que percebessem, estavam completamente apaixonados!

E como foram felizes!


Mas numa noite, louca para rever seu grande amor

O passarinho distraído e descuidado saiu em alvoroço e, sem que percebesse

Acordou sua mãe...

Dando falta da cria, levantou atarantada, procurou por todo canto

Sem achá-la e passou a noite de vigília


Quando pela manhã chegara de mansinho de seu amoroso encontro

Deu de cara com a mãe e seu mundo de amor começou à ruir

Seu segredo fora descoberto e todos os medos de anos à fio vieram à tona

Mas o amor recém conquistado havia deixado marcas em seu coração

E ao seu modo, coração na mão, enfrentou pela primeira vez a situação.


A mãe, experiente e astuta,

Logo percebeu que aquela ousadia e vitalidade só podia ser obra do amor

E se continuasse batendo de frente, perderia para sempre sua cria

E assim decidiu ir levando a questão em banho-maria

Enquanto arquitetava um meio de romper esse arroubo da filha


E começou à questionar a natureza dos falcões

Que por trás da sua nobreza, havia muita vileza

E que não tardaria, para que este falcão enjoasse de sua cria

A desprezasse e a abandonasse sem qualquer explicação


A cria apaixonada buscava não dar atenção

O amor descoberto trouxe cores à sua vida!

Mas a dúvida é sempre inimiga dos amores

E vai perfurando o coração como água que bate insistente na dura pedra

Até que um dia a perfura


Eis que um dia enquanto fazia seu vôo rasante

O falcão foi ferido por uma pedra de uma atiradeira

E machucado, o falcão não pode ir ao seu encontro noturno

E a noite toda ela passou à lhe esperar à margem do lago

E chorou de solidão


Quando voltou triste pela manhã

Não soube esconder sua tristeza e decepção

E desabou sob o colo da mãe que viu a oportunidade perfeita

Para recuperar sua afeição


E como numa armadilha, preparou a filha

Para questionar sem tréguas o falcão por sua tão grave falta

Sabia que falcões eram orgulhosos, e não aceitariam por muito tempo sermões

Assim, aconselhou-a por fim à por fim à questão caso não fossem satisfatórias as explicações

Antes que o falcão lhe partisse o coração

Como o fizera o gavião com a mãe, renovando assim a maldição


Ainda ferido, o falcão foi na noite seguinte ao seu encontro

E como ave orgulhosa, escondeu da amada suas feridas ainda vivas

Por mais que essas lhe incomodassem e lhe tirassem o chão e a razão

E mal chegou foi sendo bombardeado por uma série de acusações

Antes que pudesse dar sequer uma explicação

Ferindo assim o seu orgulho como premeditara a mãe

E ferido na carne e no espírito

Acabou retribuindo os ataques que sofrera


Então o passarinho mortalmente magoado

E encontrando sua primeira dor no amor

Resolveu refugiar-se de volta ao seu ninho

E nunca mais na vida ver o falcão


O falcão tentou em vão encontrar o ninho

Mas nunca conseguiu

Sempre que batia às portas elas nunca se abriam

E triste entregou-se ao seu destino

Ao seu caminho de auto-sacrifício

Que vai das trevas mais densas à redenção

Trazendo consigo como alento para as horas mais duras do suplício

A memória da canção do passarinho

Cuja lembrança do amor profundo vivido

Tornou possíveis e suportáveis todas as dores do calvário necessário

Até atingir a iluminação


Já o passarinho que conheceu o amor nas asas do falcão

Nunca mais voou sozinho

Nem cantou sua canção

Vive como uma sombra triste em seu ninho

Preso à saudade da vida feliz que jogou fora

E à lembrança do amor que mandou ir embora.


Franklin Maciel

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