Tudo que é líquido desmancha no ar

Tudo que é líquido desmancha no ar

Luciano Trigo

Somos todos mercadorias, diz Zygmunt Bauman em Vida para consumo; na Polônia, acusam o sociólogo de ter integrado a polícia secreta comunista

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Aos 83 anos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman continua demonstrando uma impressionante sagacidade na interpretação das transformações em curso na sociedade. Em Vida para consumo (Zahar, 200 pgs. R$36), ele faz uma análise provocadora do impacto do consumismo sobre o modo como vivemos hoje, um estilo de vida caracterizado pela fragilidade dos laços, pelo embaçamento moral, pela falta de referências fixas e por uma fluidez classificada como “líquida” – adjetivo presente nos títulos de cinco livros seus: Amor líquido, Modernidade líquida, Vida líquida, Medo líquido e tempos líquidos.

O consumo é um tema sociologicamente rico, pois pode ser associado tanto a uma suposta afirmação da liberdade individual quanto a (também supostos) mecanismos de controle e manipulação das pessoas. Além disso, seus diferentes aspectos – econômicos, políticos, históricos, sociais, culturais, psicológicos – tornam a discussão sobre o consumo potencialmente inesgotável. Bauman parte da tese de que deixamos de viver numa sociedade de produtores e passamos a uma organização social baseada puramente no consumo, na qual as pessoas se tornaram elas próprias mercadorias descartáveis numa prateleira, que precisam se remodelar continuamente para não ficarem obsoletas.

As identidades sociais, os valores morais, os padrões de comportamento e a outrora complexa rede de relacionamentos humanos foram totalmente colonizados pela lógica de mercado, a ponto de tornar difícil qualquer resistência ou contestação, já que não existe mais um “lado de fora” de onde se possa criticar o mundo. Até mesmo a realidade virtual já foi ocupada por esse novo paradigma: basta observar como nas redes de relacionamento como o Orkut as pessoas “vendem” uma imagem próxima à de produtos a serem consumidos, enfatizando elementos típicos da linguagem publicitária, para estabelecer laços passageiros, que podem ser desfeitos com rapidez e facilidade. Quanto menos profundidade melhor.

Isso também ajuda a entender a obsessão das pessoas pela fama, já que na sociedade de consumidores a invisibilidade equivale à morte social. Quando a interioridade é desvalorizada, o olhar e o reconhecimento do outro se tornam a única garantia de que existimos de verdade.

Daí o medo de ficar sozinho se destacar entre outros medos – de perder o emprego, de ser vítima da violência, de não ser amado. Todas as utopias, individuais e coletivas, se baseavam na ilusão da possibilidade de controle do mundo (social, natural, econômico). Isso se desmanchou no ar (ou na água). Nessa era da incerteza total, o consumo como último nexo serve para fixarmos nosso lugar na sociedade, para nos distinguirmos das outras pessoas, para darmos uma ilusão de ordem às coisas e nos sentirmos cidadãos.

Bauman parece ter razão quando sugere que consumir (e ser consumido) se tornou não apenas o verdadeiro propósito da existência para um número crescente de pessoas, mas uma condição de reprodução do nosso modelo social. Tudo se transforma em moeda de troca simbólica – incluindo, naturalmente, a juventude, a beleza, a sexualidade. Gastos aparentemente inúteis e irracionais, condenados no passado, se tornaram, mais que virtudes, um novo motor na existência social.

Naturalmente, esse processo tem implicações profundas não apenas na economia, na política e na cultura, mas também na própria psicologia: fim da idéia de segurança a longo prazo, fim de qualquer garantia. A precariedade e o risco passam a ser os principais aspectos da condição humana, daí o imperativo de desfrute imediato dos prazeres e satisfação de desejos – logo substituídos por novos prazeres e desejos. Por outro lado, a nossa capacidade de tratar o outro com humanidade é reduzida, e a solidariedade se desintegra – o que na Europa se manifesta pela rejeição a estrangeiros, nos quais a sociedade tende a projetar seus medos e ansiedades.

Uma sombra no passado

Apesar de sua crescente popularidade no Brasil, onde 15 livros seus já venderam cerca 100 mil exemplares, não se sabe muito além das informações biográficas básicas sobre Bauman. Ele começou sua carreira na Universidade de Varsóvia, de onde foi afastado em 1968, após ter livros e artigos censurados. Pouco depois deixou a Polônia, passando rápidas temporadas em Israel, no Canadá, nos Estados Unidos e na Austrália, até se fixar na Inglaterra, onde é, desde 1971, professor na Universidade de Leeds. Mas… e antes de 1968? Passado de intelectual europeu é uma caixinha de surpresas. Basta lembrar os pecados cometidos na juventude por Heidegger, Cioran, Günter Grass e, como foi revelado nos últimos dias, Milan Kundera. Recentemente, Bauman engrossou a lista: foi acusado de ter integrado durante três anos o serviço secreto polonês, denunciando inimigos do regime comunista, que teriam sido presos ou “expurgados”. A acusação foi feita pelo historiador Bogdan Musial, num artigo publicado na revista Ozon. Bauman minimizou a matéria, baseada em “meias-verdades” alegando que todos sabem que ele foi um comunista entre 1946 e 1967, e dizendo não se lembrar de ter denunciado ninguém, embora se esperasse isso dele - o que é sugestivo. Sugeriu, também, que a intenção foi desmoralizá-lo como pensador de esquerda.Não que essa história altere a qualidade de obra de Bauman, evidentemente. De certa forma o episódio até ilustra uma das teses desenvolvidas por ele: a de que a modernidade criou condições cada vez mais favoráveis para que os indivíduos ajam de forma não-ética, pois as ações são dissociadas de suas conseqüências – o que explicaria a cumplicidade do alemão comum em relação às atrocidades do Nazismo, por exemplo, tema abordado no livro Modernidade e Holocausto. Num contexto de relativismo crescente, manter a integridade é um desafio cada vez maior, ao qual nem todos conseguem responder, ao menos em determinadas fases da vida.

Comentários

Unknown disse…
Olá,
Sou Bruna Pallini, trabalho na Edelman, agência de comunicação da Jorge Zahar Editor.
Esse post do Luciano Trigo é realmente muito bom, descreve bem o livro Vida para consumo. Como diz Bauman ser membro da sociedade de consumidores é uma tarefa assustadora, um esforço interminável e difícil.
Abraços!