ONG: expansão da soja amplia conflitos agrários

ONG: expansão da soja amplia conflitos agrários

Claudio Leal

O relatório "O Brasil dos Agrocombustíveis - Impactos sobre terra, meio e sociedade", lançado nesta quinta-feira em Buenos Aires, na Mesa Redonda pela Soja Responsável, traz um estudo do impacto socioeconômico do cultivo de soja e mamona no Brasil. Essas duas culturas fornecem matéria-prima para a produção de agroenergia, um dos principais eixos de desenvolvimento do governo Lula.

A pesquisa foi realizada pela ONG Repórter Brasil e terá mais dois relatórios em 2008. Nos volumes seguintes, serão analisados o milho, algodão, dendê e babaçu (número 2); em seguida a cana e o pinhão manso (número 3). O projeto foi desenvolvido para compreender os conflitos humanos e ambientais em decorrência da demanda internacional por biocombustível, sob a liderança da China e Estados Unidos.

Para a Repórter Brasil, a expansão das fronteiras da soja no País tem ampliado a contaminação de rios e os desmatamentos, além de agravar a concentração da terra, o êxodo rual e os conflitos agrários. A pesquisa conta com o apoio de movimentos sociais como o MST e a Pastoral da Terra. Há também um aumento do número de pessoas contaminadas por agrotóxicos.

- Quando você produz cada vez mais soja com um modelo agroquímico, para aumentar a produtividade, cada vez mais você vai ter pessoas contaminadas. No caso da contaminação humana por agrotóxico, a gente utilizou um banco de dados chamado cinetoques e ele me mostra que está aumentando, no Brasil, o número de contaminados por agrotóxicos.

Um esboço da radiografia feita pela ONG:

"No que pese o produção de soja ter aumentado, o número de propriedades rurais dedicadas ao grão caiu 42% em uma década. A taxa foi de 16,3% para as outras propriedades. Esse processo de expansão não têm sido pacífico: ele pode estar por trás de pelo menos quatro dos 16 conflitos agrários no Estado do Mato Grosso em 2007, de ao menos 18 dos 38 conflitos anotados no Paraná, e de pelo menos dois dos 105 conflitos apurados no Pará."

Em entrevista a Terra Magazine, o coordenador do Centro de Monitoramento de Agrocombustível e membro da Repórter Brasil, Marcel Gomes, afirma que o relatório não comprova o risco de agravamento da fome com a expansão da soja - ao contrário do que diz o relator especial da ONU, o sociólogo suíço Jean Ziegler.

- O que a gente percebeu, no Brasil, é que não há grandes indícios de que a substituição de áreas de cultivo de alimentos (feijão e arroz) por soja ou cana esteja prejudicando a oferta de alimentos. A gente não dá uma conclusão definitiva. A pesquisa simplesmente não conseguiu comprovar isto - diz Marcel Gomes, que não descarta a pressão sobre o preço dos alimentos.

Segundo o "Brasil dos Agrocombustíveis", a lavoura de soja aumentou 20% na região Norte e 7,9% no Nordeste. Há críticas às relações trabalhistas e denúncias de trabalho escravo. "Apesar da intensa mecanização do setor, trabalho escravo tem sido encontrado em fazendas de soja na etapa de limpeza do solo para a implantação de lavouras. Dados da 'lista suja' do trabalho escravo, cadastro público de empregadores que utilizaram esse tipo de mão-de-obra mantido pelo ministério do Trabalho e Emprego, de 2007, mostram que 5,2% dos casos ocorreram com o grão", diz um trecho.

A Repórter Brasil denuncia também o avanço da soja em terras indígenas, a exemplo da Maraiwatsede dos Xavante (Mato Grosso) e da Guarani-Kaiowá (Mato Grosso do Sul).

- Você encontra desde produtores invadindo áreas indígenas a agricultores fazendo parcerias com índios para produzir soja. Um problema grave que a gente encontrou é a questão da contaminação das cabeceiras do parque do Xingu. Porque as cabeceiras do Xingu estão fora do parque, em áreas de soja. Nessas áreas, as cabeceiras são contaminadas e levam agroquímicos para dentro do parque - relata Gomes.

O relatório pode ser conferido no seguinte endereço: http://www.reporterbrasil.org.br/agrocombustiveis.pdf . Leonardo Sakamoto é o coordenador-geral do projeto.

A seguir, a íntegra da entrevista com Marcel Gomes.

Terra Magazine - Como foi pensado o relatório "O Brasil dos Agrocombustíveis"?
Marcel Gomes - A gente criou na (ong) Repórter Brasil um grupo de pesquisa pra trabalhar com biocombustíveis, um tema que está muito em voga. Uma das primeiras coisas desse trabalho é a pesquisa sobre culturas agrícolas utilizadas para produzir biocombustíveis. Ao longo deste ano, e do próximo também, vamos produzir uma série de relatórios com a idéia de avaliar e relatar os impactos dessas culturas agrícolas. No Brasil, sobretudo por causa do preço do petróleo, há a perspectiva...

De renovação energética?
Sim, a substituição da matriz energética. Há uma série de projetos econômicos, governamentais, científicos, sobre o que pode substituir o petróleo. Uma das possibilidades é o biocombustível - no nosso caso, o biodiesel (soja, mamona) e o etanol (cana-de-açúcar). Então, a nossa idéia é, a partir dessa perspectiva de que o agrocombustível vai ser cada vez mais utilizado no Brasil e no mundo, avaliar essas culturas agrícolas. Porque se você produzir mais agrocombustível, terá que produzir mais culturas agrícolas que sirvam de matéria-prima. Estudamos quais são essas culturas e quais impactos elas causam ao meio ambiente, às pessoas, aos trabalhadores.

Quais os problemas encontrados nas relações de trabalho?
Esse foi um dos focos. Antes de começar a pesquisa de campo, a gente fez um trabalho pra descobrir quais fatores podíamos avaliar. A gente choveu um pouco no molhado, mas procuramos entidades de pesquisa, governo, certificadores, e descobrimos quais são as bases de dados que poderiam servir para avaliar os impactos causados. A gente percebeu, por exemplo, que existem dados sobre contaminação humana, contaminação de rios, e problemas trabalhistas. A relação das culturas agrícolas com a geração de empregos, com a qualidade deste trabalho, foi um dos temas que a gente quis pesquisar. Então, temos no relatório dados de contaminação com agrotóxicos. Quando você produz cada vez mais soja com um modelo agroquímico, para aumentar a produtividade, cada vez mais você vai ter pessoas contaminadas. No caso da contaminação humana por agrotóxico, a gente utilizou um banco de dados chamado cinetoques e ele me mostra que está aumentando, no Brasil, o número de contaminados por agrotóxicos. Foi essa a abordagem inicial e a gente passou a ir a campo para ver lugares onde exitem mais problemas como esse. Desmatamento, contaminação... Nós fomos para os Estados onde há muita produção de soja ou mamona, onde há potencialmente chances de crescimento dessas culturas.

A expansão da fronteira da soja pode ser evitada?
Há previsões - por exemplo, em levantamento do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos - de que nos próximos dez anos vai haver o boom da soja no Brasil, principalmente pela demanda chinesa, mas também pela produção de agrocombustíveis, sobretudo nos EUA. Lá, eles produzem a partir de milho. Então, nos próximos dez anos, estima-se que a área de soja nos EUA vai diminuir. No mundo, você tem três países que podem atender à demanda de soja: o Brasil, os EUA e a Argentina. Desses países, quem vai suprir melhor a demanda chinesa é o Brasil. A expectativa é que, ainda em 2008, o Brasil se torne o maior produtor mundial de soja. Essa curva ascendente vai continuar a acontecer nos próximos anos.

Um recente trabalho do relator especial da ONU Jean Ziegler apontou o risco da expansão não-controlada dos cultivos destinados à produção de biocombustíveis no Brasil. Ele acredita que pode agravar a fome. É um risco real?
O que a gente percebeu, no Brasil, é que não há grandes indícios de que a substituição de áreas de cultivo de alimentos (feijão e arroz) por soja ou cana esteja prejudicando a oferta de alimentos. A gente não dá uma conclusão definitiva. A pesquisa simplesmente não conseguiu comprovar isto. Mas percebemos o seguinte: está havendo, no mundo inteiro, uma pressão sobre o preço dos alimentos. No relatório, colocamos o seguinte: num cenário de pressão sobre alimentos - a inflação entre 2004 e 2007 foi de mais de 30% -, se você aumentar ainda mais a demanda por agro-combustíveis, ela pode ser um problema, sim, no Brasil. Não existem dados, números, estudos sobre essa substituição. Mas é elementar supor que, nesse cenário de pressão, você produzir agrocombustíveis é um problema. As empresas têm que considerar isto.

Há ameaças a reservas indígenas?
Esse é um capítulo interessante. A gente percebeu em vários momentos a relação entre produtores de soja e áreas indígenas. Você encontra desde produtores invadindo áreas indígenas a agricultores fazendo parcerias com índios para produzir soja. Um problema grave que a gente encontrou é a questão da contaminação das cabeceiras do parque do Xingu. Porque as cabeceiras do Xingu estão fora do parque, em áreas de soja. Nessas áreas, as cabeceiras são contaminadas e levam agroquímicos para dentro do parque. Então, os índios já notam problemas de quantidade de peixe e peixes contaminados. São problemas que conseguimos aferir.

Terra Magazine

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